Deu Ruim?

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Clara

— A vela!

Tia Bella interrompe outra vez meu relato e eu olho para ela, impaciente, uma sobrancelha arqueada.

— É isso, Clarinha! — Meu corpo vem em minha direção (Jesus, que coisa mais bizarra) e segura minhas mãos. — O segredo está na vela! Isso tudo aconteceu porque você soprou a maldita vela!

— Eu, hein, agora a culpa é minha? — eu me defendo.

— Em parte é, né. — Tia Bella me recrimina com os olhos. — Não sei se isso é desejo que se faça.

Encolho os ombros.

— Agi por impulso — justifico.

— Tá, mas agora chega de drama. O único jeito de desfazer essa loucura tem que ser soprando a vela de novo. — Solta minhas mãos e se afasta. — Anda logo, troca de roupa. Temos que recuperar aquela maldita vela de qualquer jeito! — Corre para a parte dela no armário. — Vai, Clara!

— Tá bom, já vou! — Eu me apresso em direção à cômoda. — E se a mamãe já tiver jogado fora a vela? — pergunto e pego aqueles meus shorts jeans rasgados, além de uma camiseta regata branca.

— Reviramos o lixo, corremos atrás do caminhão, não importa o que precise ser feito, nós VAMOS achar essa vela amaldiçoada.

Arranco a camisola do corpo e a jogo para um lado. Distraída, pego a camiseta e passo pela cabeça. Meus braços custam a passar pelas alças e a bainha se enrola abaixo do meu pescoço descendo com dificuldade. O short também custa a entrar, mas eu prendo a respiração, puxo o zíper e fecho o botão. Procuro meus chinelos e, assim que os calço, anuncio:

— Estou pronta. Vamos. — Eu me volto para a Tia Bella, que está paralisada olhando para mim, fazendo uma careta estranha.

— Você está ridícula! — exclama.

Abro a boca ofendida.

— Você também, tá! Esse vestido não fica nada bem em mim. — Aponto para o decote murcho sobre meus limõezinhos (que agora estão em poder dela) e me volto para o espelho de corpo inteiro.

Meus shorts jeans preferidos se amoldam ao quadril da mulher no reflexo, compondo uma figura voluptuosa, e uma faixa da barriga sarada está à mostra. Tia Bella jamais se vestiria assim (Pelo menos não agora, que não trabalha mais naquele programa de auditório.), e eu percebo que estamos em apuros.

— Ai, tia, e agora, o que a gente vai fazer?!

Ela se aproxima e também se olha no espelho, soltando um suspiro em seguida.

— Somos duas antas mesmo.

Olho para ela.

— Não posso vestir minhas roupas enquanto estiver com esses seios tão... — segura os limõezinhos e limpa a garganta — tão... delicados.

Percebo o eufemismo e estreito os olhos sobre ela, que já arranca o vestido pela cabeça.

— Anda, toma o vestido e me passa a sua roupa. Depois a gente pensa nesses detalhes; você não pode sair por aí, com meu corpo, se comportando feito uma adolescente.

— A recíproca é verdadeira — mando.

Trocamos as roupas e algumas farpas, então caminhamos para a porta. Sinto um friozinho na barriga, como se eu ainda fosse eu e estivesse prestes a ser flagrada, a qualquer momento, usando as roupas da Tia Bella. Não que eu não seja eu, eu ainda sou, embora não seja mais. É um pouco confuso, eu sei, mas não poderia ser de outro jeito.

Os silicones da Tia Bella pesam horrores, sinto que estou com uma âncora amarrada ao pescoço. Tenho dificuldades para caminhar ereta. Estou vendo a hora que vou me desequilibrar e beijar o chão, mas ainda bem que tenho esses airbags para amortecer a queda. Vou ter que dobrar a rotina de exercícios com o livro na cabeça, penso. Apesar de não estar em meu corpo, não posso deixar a silhueta da Tia Bella ficar igual à do Corcunda de Notre-Dame. Ele é uma gracinha, mas não passaria no teste para os comerciais daqueles shakes. Também vou ter que ter uma conversa muito séria com a minha tia mais tarde. Ela fala de mim, mas se comporta estranhamente, caminhando na ponta dos pés e olhando furtivamente para os lados, como se temesse ser pega cometendo algum crime. Parece o personagem de algum desenho animado. Meu corpo não pode andar por aí fazendo esse papel ridículo.

Ao alcançarmos a escada, pego o livro e coloco na cabeça.

— Você está louca? O que pensa que está fazendo?! — Tia Bella arranca a brochura da minha mão. — Você não pode fazer isso!

— Tá bom, eu esqueci!

Descemos correndo, com a intenção de ir direto para a cozinha procurar a vela. A casa está silenciosa, todos já foram para a casa do tio Caio e agora podemos respirar aliviadas.

Reviramos os armários da cozinha e, depois de uns cinco minutos procurando, finalmente encontro a vela, em um cantinho do tabuleiro, que já está limpo e encostado em uma extremidade da pia.

Para a coisa funcionar direitinho, a tia Bella sugere colocarmos a vela no resto do bolo que sobrou, que ela encontrou na geladeira.

Tudo preparado e, antes de soprar a vela, um filme passa em minha cabeça. Meu sonho sempre foi ser igual à Tia Bela e, apesar de ele ter se realizado de um jeito meio torto, lamento não poder aproveitar. Isso não pode ter acontecido por acaso, deve haver uma razão, uma voz sussurrada fala ao meu coração.

Acho que não está na hora de voltar a ser eu.

— Anda, Clarinha, sopra — ela me apressa e eu encho os pulmões, prestes a jogar o sonho de uma vida fora. É uma pena mesmo, nem tive tempo de usar aqueles Louboutins de solado vermelho e nem aquele Lanvin branco, decotado... Solto o ar sem soprar a vela. Não posso fazer isso!

— Tia, será que a gente não está se precipitando?

— Precipitando?!

— É! Você não vê? Esta é nossa chance de realizar um grande sonho!

— Que sonho, garota? Eu nunca quis me desfazer das minhas próteses e... Ai, Clarinha, desculpe. Eu adoro seu corpo, você é linda, mas é uma loucura continuar com isso! — Minha tia para pensativa. — Eu converso com sua mãe e pago quantas próteses você quiser.

Será? Imagino-me andando por aí no corpo da Tia Bella, com as roupas da Tia Bella, os fãs da Tia Bella se arrastando ao meu redor. — Não seria nada mal. Depois imagino a Tia Bella indo ao colégio no meu lugar, escrevendo as minhas redações e conversando com o crush... — Não, isso não vai prestar.

— É, acho que você está certa. — Tchau, Louboutins, tchau, Lanvin, Burberry e Dior...

Há muita coisa em jogo. Com uma adulta "sem noção" perambulando por aí com meu corpo, sabe Deus o que pode acontecer. Ela pode pôr tudo a perder com o crush, meses e meses de trabalho árduo, investimento do meu tempo e da minha inteligência indo por água abaixo. Não, ela está certa, a gente precisa dar um jeito nisso.

Volto a encher os pulmões. Fecho os olhos desejando ser a Clara fervorosamente e sopro com força.

Espero um pouco com os olhos fechados. Espero a explosão, e ela não vem. Nada daquelas sensações esquisitas, e eu não sinto que me desfiz em pedacinhos pequenos... Abro um olho e depois o outro.

Vejo meu corpo, não estou nele. É a Tia Bella, que olha para a vela apagada, os ombros descaídos.

— Deu ruim, Clara?

— Deu ruim, tia.

Deu RuimOnde histórias criam vida. Descubra agora