Não Cobiçar o Bombom do Próximo, amém.

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Clara

Aproveito que Tia Bella e Ruy foram visitar a casinha de sapê onde vão morar, para me deitar em minha própria cama. Fecho os olhos e suspiro aliviada. Os pés em modo plástico-bolha e o corpo dolorido por praticar as peripécias (coisas que uma diva sã jamais faria) da Tia Bella estão passando a conta neste exato momento.

Como se não bastasse quase ter virado comida de um pastor alemão contaminado pela raiva, a chegada do Ruy, sua sabatina louca e meu pai me cercando pela casa, querendo conversar, tudo isso foi suficiente para me deixar meio zonza; nem precisei fingir cólicas como Tia Bella sugeriu.

Meu cérebro está cansado, abatido, destroçado e confuso por ter que comandar este corpo estranho que insiste em andar feito uma galinha ciscando no quintal. Preciso de uma soneca, um sono de beleza, para voltar a funcionar como sempre.

Pensando bem... — abro os olhos —, já que estou presa neste corpo aqui, posso aproveitar para comer aqueles chocolates que a Tia Bella esconde no gaveteiro da cama ao lado. Desde que os descobri, não paro de pensar neles; é quase uma compulsão e só pode ser culpa dos hormônios descontrolados da minha tia.

Não, não me olhe assim, sou uma menina boa (sensata apesar do que dizem as más línguas), procuro sempre andar nos limites do politicamente correto. Sei que não é certo tirar proveito do corpo alheio para comer sem engordar e nem cobiçar o bombom do próximo, mas aqueles docinhos recheados de cereja são uma tentação grande demais para uma aspirante a diva em plena crise existencial, ocupando um corpo em abstinência de açúcar. E, já que são da Tia Bella, eu não estaria fazendo nada errado. Tecnicamente eles não pertencem só ao cérebro dela, mas também (e principalmente) ao estômago, que agora está em meu poder. Portanto cabe a mim conduzi-los ao lugar a que pertencem. E, sendo assim, no fim das contas eu estaria fazendo uma boa ação. Acompanhou meu raciocínio dedutivo? Ah, eu sabia que você me compreenderia.

Com o coração mais leve agora que você está ao meu lado, eu me abaixo em frente à cama e abro a gaveta. Pego um bombom, enfio na boca, e minhas papilas gustativas quase desmaiam de tanta felicidade quando o licor de cereja se derrama em minha língua.

— Huuum — exclamo imitando a Ana Maria Braga enquanto fecho a gaveta.

Quase mando soltarem os cachorros, quando o fruto proibido eclode em minha boca, e decido, num impulso, pegar mais um: só mais unzinho não vai fazer mal. Porém meus dedos escorregam acidentalmente perto da caixa e acabam pegando mais dois — depois tenho que ter uma conversa com eles.

Quando dou por mim, os bombons já estão na minha boca, juntinhos e aglutinados, como gêmeos siameses.

— Humm, hummm, hummm...

Ouço duas batidas à porta e dou um salto, pousando o bumbum sobre o colchão. Mastigo rápido e tento engolir tudo de uma vez, enquanto a pessoa do outro lado da porta insiste. Fico entalada.

Droga, a gente não pode nem cometer um deslizezinho de nada em paz!

— Entra! — respondo de boca cheia, torcendo para que não seja o papai; ele certamente perceberia a culpa em meu semblante e viria com mais sede atrás da conversa que quer ter com a irmã.

A pessoa abre uma fresta e coloca a cabeça para dentro. É o Matheus, ufa! Respiro mais tranquila e limpo, do canto dos lábios, os vestígios do meu pecado.

— Tia? — Sorri. — Que bom que ainda não dormiu, está a fim de ver um filme? Eu e papai vamos fazer uma sessão de cinema em casa mais tarde.

— Ahn... — As sessões de cinema deles são horripilantes e eu já tenho meu próprio filme de terror para assistir, dirigir e, se possível, flopar. Além do mais, preciso evitar o papai a todo custo. — Eu... acho que não. Estou meio cansada.

Deu RuimOnde histórias criam vida. Descubra agora