Crônicas Místicas do Cerrado

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Clara

Com tudo o que aconteceu aquele dia em que fomos atacadas pelo monstro que habita o quintal do padre, não foi fácil dar início aos nossos planos de recuperação corpórea hoje à tarde. D. Fabiana, obviamente, relutou em deixar a filha (Tia Bella, na verdade.) sair depois da aula, na companhia de Ruy e Bella — ou melhor, Ruy e eu. Mas, com muito custo, conseguimos convencê-la.

Espero que você esteja entendendo essa confusão, mas o importante mesmo é que saiba que, às onze e trinta em ponto, eu e meu muso, conselheiro das divas — ele no volante cheio de folgas da Jabiraca (infelizmente para as duas coisas: motorista e veículo) — passamos pela escola e recolhemos meu corpo. Pois é, o carro da Tia Bella voltou para a oficina e não nos restou alternativa senão arriscar a vida confiando ao Ruy Roda-dura-Castro a direção do pão de forma peçonhento. Matheus Henrique não é bobo nem nada, reivindicou a tarde para resolver coisas da campanha, ficou na escola.

Depois de uma parada rápida para o almoço, seguimos as indicações da Tia Lelene com quem, discretamente, Ruy havia sondado sobre a benzedeira mais badalada do Cerrado. Apesar de termos perdido nosso tempo naquela entrevista com Pe. Renato, ainda temos esperanças de resolver nosso problema de troca de corpo por vias místicas, ou religiosas (como preferir), conforme dita a lógica.

Sempre digo que moro onde Judas perdeu as botas, mas essa mulher abençoada com certeza mora onde o condenado perdeu as meias e, quiçá, até as frieiras. Agora é oficial: eu e minha tia somos duas sobreviventes; chegamos ao nosso destino ilesas, apesar da total falta de senso de direção e de coordenação motora de Ruy Castro, O Barbeiro.

Ao bater à porta do humilde casebre de pau a pique, somos atendidas por uma senhora de meia-idade, morena, atarracada e de olhos oblíquos, que se diz neta da benzedeira. Ela nos explica que a senhora, de 92 anos de idade, sofre de perda auditiva, proveniente da idade, e de Mal de Alzheimer, mas que continua ativa como abençoadora das almas desvalidas e perdidas, afinal de contas esse é um dom divino que só se perde depois de bater as botas.

Também explica que, devido à doença, a idosa perdeu boa parte das memórias recentes, de maneira que o único idioma de que se lembra é sua língua materna, o tupi-guarani. Mas ela logo nos tranquiliza, certamente ao notar o desespero em nosso rosto, garantindo que fala o idioma materno da avó e que irá atuar como intérprete.

Sendo assim, eu e Tia Bela nos revezamos explicando à mulher mais jovem o acontecido, expondo os fatos, com muita clareza, desde o momento em que a minha tia estava naquele túnel escuro da festa... Espera aí, o que ela estava fazendo lá?

A mulher mais jovem ouve com atenção e logo se volta para a mãe, que está sentada em uma cadeira de vime. O que se segue é uma sucessão de gritos em língua estranha. A mais jovem grita, e a idosa geme algo parecido com o balido de uma ovelha desgarrada, em resposta.

— Piritucu, tachi-poé!

— Heeeeeeeein!

Isso se repete algumas vezes e eu noto que o Ruy balança a cabeça afirmativamente o tempo inteiro, com ar de sapiência ­— eu não sabia que ele falava tupi-guarani. Olho-o questionando-o em silêncio e recebo um encolher de ombros em resposta.

Então, recebendo uma ordem brusca, nossa intérprete ajuda a mãe a ficar de pé e lhe entrega algo pequeno. A idosa caminha com dificuldade em minha direção, para e lambe a palma da mão. Mas que diabos ela está fazendo?

Estende os dedos esquálidos e trêmulos em minha direção, e eu contenho os ímpetos de me envergar para trás feito uma vara de marmelo. A velha acerta em minha testa um tapa certeiro e eu sinto a coisa grudenta. Toco-a na esperança de que não seja uma goma de mascar açucarada e mastigada e constato aliviada (mais ou menos) que é apenas uma folha embebida em saliva centenária. Calma, Clara, é abençoada e diet, digo a mim mesma.

Deu RuimOnde histórias criam vida. Descubra agora