Gabinete (de sapê) de Crise

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Bella

— Ainda não estou acreditando que você não fez nada. — Ruy coça a testa e me encara furioso. — Às vezes fico pensando se aquele shake não afetou seus neurônios, Isabella.

Pela milésima vez, ele repete a mesma pergunta.

— E o que você queria que eu fizesse? Que trancasse o Caio no quarto para provar que sou eu no corpo da Clara e que a minha sobrinha está por aí desfilando com meu corpo?

Ainda bem que não tive aula hoje. Conselho de Classe. Logo que acordei, vim para a casinha em que Ruy e eu vamos morar (ou pelo menos íamos, quando eu ainda era dona do meu próprio corpo), procurando um pouco de paz, mas encontrei o Ruy.

Saio para a varanda, sento-me no banco de madeira. O resto da comida que D. Ana mandou no almoço ainda está na mesa. Consigo ver a copa da árvore que fica no meio do descampado. A mesma vista do dia da festa... Já é de tarde e o sol ameaça se pôr. Passei praticamente o dia aqui, dobrando roupas de cama, lavando copos. Coisas normais de uma pessoa normal.

Só a minha vida não está nada normal. Deu ruim total.

— Sabe qual é o problema? — ele continua com a sua ladainha. — Você coloca os gêmeos em uma redoma, como se pudesse protegê-los do mundo. Não duvido do seu amor por eles, mas na verdade você se cobra por não ter feito isso com a Katharina.

Giro para o lado e encontro os olhos daquele que me conhece melhor do que eu mesma. O amigo louco de todas as horas. O insano que acaba sempre fazendo e falando a coisa certa.

— Isabella, você tem que contar tudo para a Clara.

— Eu sei. Mas agora não adianta mais.

Abraço meus joelhos e Ruy balança os braços freneticamente, fazendo uma careta.

— Pavorzinho de você nessa onda bad. Sai desse corpo que não te pertence, no sentido amplo da palavra.

— O que vamos fazer? — pergunto desanimada. — Já tentamos de tudo um pouco e nada desfaz essa situação.

— Você confia em mim? — ele pergunta de maneira perigosa.

Claro que não!

— Não vou deixar você voltar a procurar a mãe Chachá.

— Não conteste meus meios, Faraônica. Talvez eu não consiga reverter o quadro, mas preparar o campo para destroca eu posso.

— Ruy, só um milagre para tudo se resolver. Mesmo que o Caio me perdoe, eu nunca vou poder ficar com ele. Essa troca não tem volta.

— Isabella, Mãe Chachá não erra uma, você viu o que aquela mocinha falou. Pareceu até maldição, chego até a me arrepiar. Ela falou que a Clara ia arruinar sua vida, e batata. Tomei a liberdade de ligar para saber se a segunda consulta estava dentro do orçamento e descobri que podemos até contratá-la como uma espécie de guru particular. Ela tem pacotes incríveis.

— Que orçamento, Ruy? — pergunto com medo da resposta.

— Da Superintendência de Crise. Tive que criar, Faraônica. — Dá de ombros na maior cara de pau. — O Chefíssimo não vai se importar com gastos para a sua cura espiritual. — Bate palma como se lembrasse de alguma coisa. — Os dólares escondidos que você generosamente ofertou para financiar a carreta em nome do Caio... — Para e coloca as mãos na cintura. — Não acredito que você achou que eu não iria saber. — Balança a cabeça em negação. — Bem, esse recurso inesperado teve que ser realocado, já que o Faraó fez questão de bancar a festa sozinho. Foi daí que tirei recursos para a criação da Superintendência.

— Quando foi isso?

— Na quarta, depois que eu transferi a sua generosa contribuição para o Matheus Henrique. — Oi? Contribuição? Penso em interrompê-lo, mas o que vem depois me faz arrepiar. — Eu liguei para o Faraó sugerindo, de forma sutil, que não era elegante um futuro prefeito usar o dinheiro da futura primeira-dama para fazer campanha. Isso poderia acarretar um escândalo no futuro. Principalmente diante dos planos dele... — Planos? Que planos? Ruy não revela mais nada e dispara como uma metralhadora. — Ainda mais porque ele fica com essa brincadeira sem graça de falar que vai dar o golpe do baú. A D. Ana acredita, sabia?

— Você não fez isso... — Não sei por qual motivo chego a duvidar por um instante sequer. É claro que ele fez.

As coisas só pioram.

— E o que o Caio falou?

— O Estrupício teve coragem de rir de mim e ainda teve o desplante de me ameaçar, Isabella. Ele falou que era para eu aproveitar, que quando se casasse com você a minha mamata iria acabar. Imagina só, o Chefíssimo já tinha falado essa atrocidade, mas eu achei que ele estivesse brincando. Não se usa mais deixar o marido no poder...

Depois disso eu não consegui ouvir nenhuma palavra. Sinceramente já foi um grande feito manter qualquer conversa depois que tudo aconteceu. Minha vontade é sumir, contudo até esse direito me foi retirado. Como fugir com o corpo da Clara?

— Eu tenho que ir, a Clara está me esperando.

Deixo Ruy sozinho e volto para a casa do Rodrigo. Engraçado que, de um tempo para cá, já não tenho mais a sensação de que essa é minha casa. Se um dia eu tiver meu corpo de volta, vou embora pra bem longe.


Deu RuimOnde histórias criam vida. Descubra agora