Capítulo 1 - Ricardo

820 7 7
                                    

O sol já invadia metade do meu quarto com as cortinas escancaradas. Meus olhos estavam lacrados porque os cruéis raios de sol estavam me torturando, impedindo que eu pudesse abrir minhas pálpebras. Esse sol luminoso e impiedoso com os morcegos acostumados ao escuro...

Qualquer pessoa com os olhos razoavelmente abertos- o que não era o meu caso naquele momento - teria pensado que aquilo não era um quarto mas os destroços de uma guerra civil. Um pedaço de pizza mofado deitado por sobre um tapete de papéis de chiclete era um sinal pavoroso. Uma coisa a meu respeito: a bagunça era parte de mim. Minha vida: uma bagunça! Minha mente: uma bagunça! Meus relacionamentos: uma bagunça! Eu, Ricardo, não sabia como sobrevivia a mim mesmo. Quero dizer, como eu consigo ser eu? Viu? Eu disse que eu era maluco...

Quando o sono já tentava me sequestrar novamente para o conforto dos travesseiros, Laurinha chegou pulando com aquelas havaianas barulhentas...Cada passada parecia um tiro de bazuca no meio de um silêncio daqueles de enterro... Sinistro! Eu só pude sentir as suas pequenas mãos me puxando as cobertas.

- Ricardo Tavares Monteiro, mamãe quer você lá embaixo agora... Ou você se atrasa pra escola!

Foi o que fiz... Uma outra coisa sobre minha irmãzinha mais nova: Laurinha tinha uma mente para o mal, uma canalha mirim, o tipo de criança que tinha arquitetado todo tipo de plano diabólico possível. Quem ousasse desobedece-la sofria as consequências...

Eu precisava de um banho morno pra começar bem aquele dia atarefado. Era uma noite ilustre aquela, quando a batalha do século se travaria entre nós e os três... Uma outra coisa sobre mim: quando me referir a nós, saiba que falo dos cinco. Os cinco são uma seita satânica que quer matar jovens virgens... Brincadeira! Esse é o tipo de comentário que Etan faria se estivesse ouvindo meus pensamentos.

Nós, os cinco, somos amigos desde o jardim de infância e nossa vidas estão e estarão sempre conectadas. Somos eu, Etan, Tadeu, Patricia e minha namorada Julia. O jardim de infância foi nosso laboratório inicial de loucuras.

Lembro do dia em que a professora Lucia disse que nós cinco teríamos que ficar numa mesma sala de castigo porque éramos as pestes da sala. Observação: Talvez eu saiba o porquê do comportamento da minha irmã.... É o seguinte... Nós nos odiavamos mortalmente com cinco anos de idade porque todos nós tínhamos temperamentos fortes já naquela idade.

Eu queimava o cabelo das garotas com o isqueiro que havia pego da mochila do meu pai e Etan pintava as caras das garotas na hora da soneca com a tinta guache de prazo de validade vencido. Tadeu sabia de tudo, via tudo e ficava quieto rindo no momento em que elas descobriam as nossas traquinagens. Mas elas não ficavam pra trás... A trolagem mais épica foi quando elas esconderam as nossas roupas no armário da sala da diretoria enquanto tomávamos banho nós três no vestiário das crianças. Imagine a cena de três moleques idiotas desfilando pelas salas a procura de suas roupas...

Mas sempre tinha sido assim, nós contra elas e elas contra nós. Tudo até o momento em que a Tia Lucia resolveu juntar a turma da pesada de vez pra ver no que ia dar, pondo nós cinco de castigo na mesma sala. Não deu muito certo no começo porque as gozações do tipo "não pega ninguém, só pega cocô de neném" enchiam o ambiente. Éramos inimigos declarados. E inimigos declarados não se unem!

Mas foi quando percebemos que podíamos muito mais juntos. Se nos unissemos, ia ser o inferno na Terra pra quem estivesse a nossa volta. E realmente foi... Caique, Marta e Gabriel, os três, os quietinhos e lesados da sala na época sofreram com a gente quando se tornaram nossos alvos prediletos com o novo rearranjo de forças.

Foi assim até que crescemos e vieram as atrações da adolescência e tudo mudou um pouco... Etan e Patricia engataram um namoro precoce quando ele roubou um beijo dela na quermesse da escola quando tínhamos nove. Ela ficou mais vermelha que maçã da Monica e ele só foi faltou desmaiar antes de tomar coragem...

No dia do beijo, eu e Tadeu não acreditamos quando ele disse que ia beijar a Patricia na boca... Gente, na boca! Na boca é tipo uma mini revolução... Se conseguissem, eles iriam ser os populares do momento porque iam ser conhecidos como o casal de namorados que se beija na boca. Gente, beijo na boca com nove anos é tipo sexo a quatro para os adultos, é ousadia e alegria total! E assim foi que os dois, Etan e Patricia ficaram juntos...

As batidas na porta eram constantes e cada vez mais fortes. Meu banho já estava quase acabando e tinha de me apressar ou minha mãe arrombaria a porta e não sobraria pedra sobre pedra. Uma outra coisa sobre minha mãe querida do coração: ela é meio bipolar, sabe? Está tudo muito bem, tudo muito bom até o momento em que os ponteiros do relógio indicam que alguém se atrasou ou algo está fora do lugar. Ela é metódica e tem transtorno compulsivo com organização... Toda vez que ela entra no recinto do meu quarto, penso que um enfarte está para acontecer... Mas aí eu lhe dou um abraço por tras e tudo fica bem novamente, o leopardo volta a ser a garça que sempre foi.

-Filho, Etan está devorando meus rolinhos primavera, ou você desce e puxa ele pra fora daqui ou eu o expulso...

Eu saio com os cabelos pretos molhados sob a testa, mal tendo enrolado a toalha e logo anunciei:

-Mãe, desde os nossos cinco você diz que vai expulsar o Etan de casa porque ele está devorando suas sobremesas... Mas você sempre desiste quando percebe que só aquele rolha de poço é capaz de comer suas gororobas...

-Gororoba é o escambau seu levado! Se arrume logo antes que eu expulse o senhor de casa...

-O que o Tadeu está fazendo, neste exato momento?

-Antes de eu subir ele estava freneticamente digitando no telefone... Eu perguntei o que ele tanto fazia e ele me disse que estava resolvendo uma parada. Eu só não sei porque vocês continuam usando a palavra parada, isso pra mim significa que vocês estão traficando drogas...

-Quem sabe?

Já vestido com meus tênis de cano alto, o jeans escuro e a camisa branca simples, peguei o celular, pus nos bolsos, agarrei uma das alças da minha mochila vermelha surrada sem quaisquer materiais escolares dentro e dei um beijo caloroso na minha mãe que me olhava com aquele olhar de "Moleque, tu vai fazer merda!".

Ela nunca esteve tão certa!

Os Cinco (EM REVISÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora