Capítulo 9 - Ricardo

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Dormência. Era o que me definia naquele momento. A única sensação superficial que possuía era a de alguém com as mãos macias agarradas às minhas.

Eu sentia arrepios constantes e um frio insuportável. Tremi incontrolável e ela veio se aproximando mais de mim e pondo as mãos frias e delicadas na minha testa.

Eu não era capaz de abrir os olhos porque parecia não ter controle sobre eles. Eu não tinha controle sobre absolutamente nada. Meus cobertores me envolviam molhados de suor e eu me mantinha imóvel mergulhado em minha impotência física cruel.

E quando o seu corpo encostou nos meus, soube que ela parecia um gelo contra mim. Eu estava em chamas, literalmente.

E então ela sussurrou nos meus ouvidos pondo um de seus braços em minha volta e me apertando com uma força controlada, acariciando levemente com a outra mão meu peito nu num ponto específico, desenhando padrões de coração mínimos mas perceptíveis.

-Ricardo, é só uma febre... Você já foi medicado... Vai passar... Tudo vai passar...

E Julia soluçou e deixou derramar uma de suas lágrimas em meus ouvidos flamejantes.

Tudo vai passar... Era o que minha namorada havia dito. E isso não se resumia apenas ao meu resultado deplorável. Mas a tudo. Ela se referia a nós dois e aos nossos amigos. Ela queria dizer que, apesar de tudo, nosso amor e relacionamento, continuava de pé.

-Julia? - eu falei em uma voz razoavelmente sonolenta com uma boca molenga. Logo soube que eram os efeitos dos analgésicos e da morfina. - Você está bem? - Eu perguntei me sentindo culpado.

Culpado por não tê-la socorrido em seu desmaio, culpado por não ter lhe concedido atenção suficiente, culpado por não ter percebido que amar não bastava mas que era preciso cuidar, conversar, ser um parceiro mais presente e companheiro...

E se Gabriel, por trás de toda sua maldade e frieza fosse capaz de oferecer a Julia tudo o que fora incapaz de lhe dar...? Algo mais do que amor...

Era o meu coração que havia se apoderado da minhas profícuas funções vitais. Pus minha razão um pouco de lado, esperando que ela demorasse a retornar. Porque se agisse com racionalidade aquele era o tipo de momento certo para que eu pudesse inquiri-la sobre Gabriel e ela, sobre a criança e todas as questões que gravitavam no entorno disso.

Julia havia me traído e em algum momento eu teria de lidar com essa informação. Mas eu sabia que se fizesse aquilo ali a perderia de vez.

Se tivesse condições, se meu corpo não me oferecesse essa limitação, se ele não tivesse me fornecido essa incapacidade momentânea, essa dormência inquietante, eu me jogaria em seus abraços e colocaria ela no meu colo, lhe beijando todo o corpo com delicadeza.

Eu amava Julia e aquilo era tudo. Pelo menos naquele momento...

-Você sabe que é errado se preocupar comigo neste momento. É a sua situação que merece cuidados... Eu estou bem! - ela disse engolindo em seco e fingindo casualidade. Ela parecia esconder um nó que mantinha na garganta. Seus olhos acumulavam lágrimas que ela se recusava a libertar. Ela se acorrentava à sua péssima interpretação. Não queria me dizer o que estava realmente acontecendo. Foi nesse momento que ela olhou para minhas pernas longamente e pôs incontida as mãos na boca.

-O que foi? - eu perguntei em um tom mais alto provocando leves dores em meu abdômen.

-Nada - ela disse se aproximando mais de mim com os olhos fechados, a expressão dura e pálida.

Eu senti seu aroma natural floral e enrosquei meus braços com a maior força que era possível pra mim, em seu pescoço. Ela abriu os olhos alarmados demonstrando-se assustada. Mas meu puxão não havia tido o efeito pretendido. Ela permanecia inerte, sem mover um centímetro de sua posição inicial, tamanha a minha fraqueza. Ela só havia modificado sua expressão para algo mais plácido e angelical, ela estava mais rosada e sorria, feito uma boba apaixonada.

Foi quando ela tocou seus lábios nos meus e eu senti aquele gosto doce de sua boca que me proporcionava mais endorfina que um chocolate suíço. Ela acariciou meus braços com ternura e amabilidade.

Perdi meu fôlego e meus pensamentos se anuvearam com minha repentina tontura.

Julia suspirou, me puxou para mais perto, deitou seus cabelos em meu peito escondendo a cara feito uma menina envergonhada.

Eu respirei fundo e antes que eu pudesse ansiar por mais um beijo daqueles ela me disse em sussurros molhando meu corte profundo com suas lágrimas derramando um dilúvio particular.

-Eu só não gostaria de me sentir culpada por tudo isso... Eu gostaria que tudo permanecesse da mesma forma mas nada pode apagar o que eu te fiz... Não foi só a traição... Foi esse seu acidente e o horror que ele te proporcionou.

Eu a puxei para mais perto e engoli meu orgulho e minha razão. Não importa!

Eu lutaria por ela com todas as minhas forças. Eu estava disposto a perdoar tudo se ela desejasse ficar ao meu lado.

Porque eu sabia que ela era a mulher da minha vida e quando se ama uma pessoa como eu a amava, nada mais importava!

Nada mais importava!

Foi quando eu ouvi ecos de gritos com a voz de minha mãe preenchendo o corredor. Nada do que ela falava era compreensível porque seus berros eram abafados pela sala e pelos seus saltos correndo em nossa direção cada vez mais altos.

Conforme sua proximidade tornava-se mais real, pude ouvir alguns fragmentos de frases desconexas. E soube que ela estava discutindo com alguém:

-Estamos no meio de uma desgraça... Aquele incêndio é criminoso... Estão nos destruindo! A danceteria não suporta! Nós vamos falir, Carrara... Cadê minha criança? Cadê meu filho? Você precisa resolver isso para mim... Dê as entrevistas que precisar! Explique o que tiver que explicar para a polícia!

Julia tentou se libertar de mim mas eu a prendi com meu abraço, medroso como eu era em perde-la.

As portas brancas do cômodo se abriram com violência e minha mãe nos olhou juntos com os dentes cerrados e o rosto avermelhado em chamas.

E então ela avançou na direção de Julia a puxando pela alça do vestido amarelo claro que ela tinha colado com meu corpo nu.

Só tive tempo de ouvir o tecido de seda rasgar-se ao meio e minha mãe arremessar o frágil corpo de Julia a puxando pelo pescoço com as unhas postiças cravadas nela. Julia gemeu de dor e desabou com força no chão.

Eu não sabia bem o que fazer além de permanecer em choque.

-Porque você não se afasta dessa vadia? Foi ela! Estamos nesse maldito inferno astral e você aí de confidências com essa puta! Foi ela que te deu isso de presente. - berrou minha mãe com os olhos empastelados e inchados gesticulando em minha direção.

E então eu soergui meu corpo com força e olhei para minhas pernas.

E eu estava sem uma perna. Eu estava aleijado.

Os Cinco (EM REVISÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora