Capítulo 2 - Julia

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O espelho estava querendo me levar para uma realidade paralela... Aonde garotas que se prezem usam saltos altos capazes de te fazer tocar o céu, possuem unhas postiças bregas com desenhos florais nos cantos, faces perfeitamente e, não menos, artificialmente rosadas, olhos expressivos com contornos negros feitos o de uma águia e vestem vestidos longos de renda azul com babados.

Aquela era eu mas aquela não era eu. Aquela era uma marionete muita parecida comigo... Só que mais limpa! O eu do espelho que, agora estava com um aura furiosa e a linha da boca retorcida queria um soco inglês naquele momento para fazer com que a garota primorosamente vestida com um tomara que caia preto atrás dela visse o que é bom pra tosse. E não estou falando de xarope...

-O que você tem criatura? Te visto feito uma princesa e você me faz essa cara de mosca morta? - gritou Patricia do fundo do meu quarto com aquele tom de falsa surpresa.

-Desmonta isso agora Paty! Que brincadeira é essa? Eu pedi pra você me arrumar... Não precisa me transformar numa palhaça... Ninguém chamou o Patatá pra festa não... Te mato nesse momento se você não me ajeitar... - eu disse apertando com uma das mãos um lápis de olho com uma ponta afiadíssima, capaz de promover uma mini hemorragia.

-Se mata né? Olha o show Ju! Você está gata felina... Vai deixar a escola inteira de pernas pro ar...

-Não sei pra que toda essa formalidade... É uma festinha como outra qualquer... Sem falar que nós vamos destruir tudo aquilo...

-Isso não significa que nós temos que nos vestir feito mulambentas, filha... A gente não pode levantar nenhuma suspeita... Todo mundo sabe da nossa fama de mal! É o último baile antes do final do último ano do ensino médio e...

-Como você aguenta se vestir feito elas? Eu não me sinto bem assim... Tão normal, sabe? - o meu vestido se retorcendo a cada gesto mais brusco.

-Se com normal você quer dizer comum, eu me adequo facilmente às situações mesmo que não goste delas... Eu sei jogar o jogo como ninguém, menina...

-Com normal eu quero dizer fútil, babaca, idiota, puta e com leves tendências ao lesbianismo... Preciso ser esse tipo de garota? - perguntei tentando retirar um apertado bracelete, enquanto ela o punha de volta repetidamente.

-Tá sabendo de algum babado? Garotas lésbicas na sala? Really?

-Porque você nunca entende o meu sarcasmo? Loira burra, porque é que eu te amo mesmo?

-Porque te aturo desde a infância? Porque fazemos parte dos cinco? Porque namoro o bofe que pega o teu namorado?

-Ricardo e Etan?

-Eles são viados, com certeza! Sabia não?

As nossas risadas ecoaram por todo o ambiente do meu quarto e meu coração pulsante novamente se acalmou quando nós nos abraçamos naquele nível de abraço que estrangularia qualquer desavisado... A minha respiração antes ofegante foi se acalmando quando me dei conta de que nada havia mudado. Isso porque as brigas que eu tinha com a minha melhor amiga continuavam as mesmas e isso era a maior prova de que eu não me tornaria uma pessoa menos especial me vestindo daquele jeito. O que faz de você quem você é são as pessoas com quem você convive... Porque minha personalidade nunca estaria em risco se eu sempre estivesse com as pessoas que mais amo nessa vida: meus pais, os cinco e... Gabriel!

-Paty, e o Gabriel? - perguntei sem formular melhor a pergunta.

-O que tem ele?

-A gente não pode, pelo menos, deixar ele de fora dessa confusão toda?

-Você sabe o que eles aprontaram com a gente... Você acha que é certo eles terem nos acusado de roubar o gabarito das provas do vestibular? Se esqueceu do inferno que passamos? Se esqueceu de que esse ano ninguém vai pra faculdade?

-Eu vou... Eu passei pra medicina...

-Porque, curiosamente, o Gabriel te poupou... Nossas brincadeiras sempre foram nada perto do que eles faziam com a gente... Mas essa última foi a gota d'água... Misteriosamente surgiram nas nossas mochilas no dia do exame, gabaritos das provas que tanto estudamos durante esse ano inteiro pra fazer... Você sabe o quanto isso é grave? Ele prejudicou pra sempre o nosso futuro... Nem os nossos pais acreditaram na gente... Entende? Você não entende porque não teve que passar por isso...

-Mas Paty, ele não fez porque queria nos ferir...

-Fez porque então?

Esse era o tipo de história que eu preferia não lembrar! Os três são nossa gangue rival. Desde que nós cinco resolvemos nos unir para aprontar na infância, eles se tornaram nossas cobaias. Mas com Gabriel sempre foi bem diferente, porque comigo, desde criança, ele sempre foi bem cortês, gentil, carinhoso... E o meu primeiro beijo foi ele que roubou... Ele já se declarou pra mim diversas vezes e eu nunca tive coragem de pedir pra que ele ficasse longe, porque queria ele sempre mais perto... É possível que se ame duas pessoas ao mesmo tempo? Eu amo e todos os dias isso me faz sofrer... A situação é cada dia mais insustentável...Todas as minhas primeiras experiências foram com o líder dos três... Mas eu namoro o lider dos cinco... Nunca soube se aquela inimizade entre Ricardo e Gabriel tinha a ver comigo... Mas a tendência é que quando todas as verdades venham a tona, as coisas piorem... Principalmente a maior delas...

-Eu não sei Paty....

-Porque você sempre foi tão complacente e simpática com os erros do Gabriel? O que aconteceu entre vocês dois? Vocês são amigos? Ju, pode falar pra mim...

-Não ligo pra ele! - disse com uma voz falhada...

-E porque você acha que devemos absolvê-lo dessa burrada? Não devemos triunfar no final? Provar que somos honestos e nunca trapaceamos? De que lado você está?

-Eu sempre estive com vocês... Esquece o que eu disse... Vamos em frente... O carro do papai já está parado aí na frente nos esperando... Os nossos gatos e o Tadeu estão sentados no sofá por horas nos esperando...

-Esta bem... - ela deu de ombros como se realmente tivesse relevado meu breve momento de piedade e eu logo abri as portas do meu quarto respirando fundo para aquela noite cheia de emoções... Eu seria capaz de ver o fim do meu outro amor? Seria capaz de assistir a derrocada de Gabriel sem fazer nada?

Foi quando me virei e aconteceu o que não podia.

-Ju, o que é isso na sua lixeira...? Parece um teste de gravidez... E a cor é azul... Deu positivo!

E tudo desmoronou feito castelo de areia, quando ele surgiu por detrás de mim, me beijando na nuca vestido com seu terno impecável e a gravata azul quadriculada nas mãos... Ricardo!

-Amor, você sabe dar nó nisso aqui? - e antes que eu procurasse desviar sua atenção, ele olhou para o lado e o repentino choque em seu rosto me fez curvar meus olhos para o chão de madeira do meu quarto. Ele havia reconhecido o tubo azul nas mãos da Paty.

- Patricia, o que é isso nas suas mãos, um teste de gravidez?

Eles não sabiam, mas eu estava grávida de Gabriel, e esse era o tipo de segredo capaz de destruir os cinco por dentro, feito uma fórmula ácida que desmancha os materiais mais resistentes...

Os Cinco (EM REVISÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora