Capítulo 7 - Julia

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Era uma escuridão desconcertante. Um ponto de luz flutuante iluminava em foco uma foto nas mãos reconhecíveis por mim.

Na foto, a festa de aniversário de Etan com ele, ainda criança, talvez com seis anos, vestido de Super-Homem com seus cabelos castanhos encaracolados e sua mão gorducha em volta de Ricardo, este com aquela elegância inconfundível de sempre bebendo um copo de refrigerante entornando levemente e pondo seu corpo magricela e a ponta de seu topete negro escorado numa menina loira de cabelos trançados, em suas vestes cor de rosa com lantejoulas e com uma tiara no alto de seu rosto maquiado delicadamente pela primeira vez. Aquela era eu. No lado oposto sentados em um banquinho de praça próximo de nós três, estavam Tadeu com sua camisa cinza desenhada com um joystick e com a frase game over em vermelho chamativo no topo, ele punha seus óculos de grau fundo de garrafa que o faziam parecer mais inteligente do que ele já é. Abraçado a Tadeu, estava Patricia com os longos cabelos escuros soltos em seus ombros com alças de seu vestido azul piscina simples. Ela beijava Tadeu na bochecha.

Como se pôde perceber, aquela foto era nossa, dos cinco, umas das muitas e talvez a mais especial.

Porque tinha sido a nossa primeira.

Mas, num piscar de olhos, ela começou a ser agitada violentamente pela figura fantasmagórica com as mãos que eu reconhecia. Foi quando um novo foco de luz surgiu ao fundo e se tratava de uma fogueira com chamas belas, em azul, laranja e amarelo, lambendo gravetos finos e frágeis. A figura negra segurando a foto com uma força incontida ao ponto de quase amassa-la foi se aproximando da fogueira lentamente até jogar a recordação nas chamas irredutíveis.

E eu me senti oca, vazia e traída, como se meus melhores amigos já não fossem parte constituinte de quem eu era.

E, novamente em questão de segundos, a figura fantasmagórica me concedeu a abertura de mais um foco de luz pra que eu pudesse finalmente reconhecê-lo.

O homem abriu seus olhos lentamente, em suspense, e me senti golpeada fortemente com o azul penetrante destes.

Era Gabriel.

Eu me aguitei na cama, me debatendo e removendo os lençóis em tons pastéis claros da cama confortável. Eu gritei, e Patricia abriu as portas do recinto placidamente branco correndo ao meu encontro.

-Está tudo bem. - ela disse com a voz ofegante e o rosto cansado com olheiras. Ela vestia o mesmo tomara que caia preto da festa, mas o vestido já não tinha a mesma representatividade, imponência e beleza que tinha, estando entrecortado por amassados e úmido em alguns pontos que eu imaginei serem lágrimas. Sob seus ombros, pairava o blazer de Tadeu. E eu estava a mil, meus batimentos cardíacos aumentando de nível no aparelho ao meu lado.

-Se acalme, por favor... Amiga, por favor... - ela me disse suplicante com as mãos macias e ternas em meu rosto. E eu finalmente percebi o que aquele gesto significava.

-Você está comigo, você não me deixou... - eu pronunciei quase cantarolando com o pouco de felicidade que me restava, forçando meus batimentos para um nível aceitável a fim de acalma-la.

-Eu nunca vou te deixar... E eu sei que você sabe disso. Você precisa de mim mais do que qualquer pessoa! A propósito, a criança está bem... A escola está toda aí fora!

Meu alívio ao saber que minha criança estava bem foi tamanho que meu coração pareceu dar saltitos em meu corpo. E um nó dentre muitos outros que me fechavam a glote foi desatado quando a notícia se materializou.

Haveria um sentimento materno florescendo em mim? Eu dei um sorriso sincero ao compreender melhor minhas sensações e acariciei meu bebê com carinho, me sentindo mais estabilizada pela primeira vez.

Patricia olhou minhas mãos pousadas sobre meu ventre e revirou os olhos dando um gargalhada um pouco forçada.

-Eu só preciso me acostumar com essa sua gravidez Ju... Mas, antes... - ela falou dissolvendo sua breve diversão forjada para me preparar para uma má notícia, disso eu sabia. Eu conhecia Paty como ninguém. -Preciso te dar uma notícia não tão agradável... - ela falou desviando seus olhares dos meus e mirando no teto como que se impedindo de chorar na minha frente.

Eu senti um calafrio e me arrepiei antes dela me conceder mais uma verdade aterrorizante...

-Logo depois que você contou tudo.... Bem... É que... Eu não sei, mas Ricardo saiu furioso com o carro do seu pai e sofreu um acidente grave... Ele está sendo operado neste momento, parece que ele corre risco de vida... Sua perna esquerda sofreu queimaduras graves!

E foi quando eu senti minha circulação acelerar novamente e os meus músculos da perna se fortalecerem. Eu não podia fraquejar naquele momento, não adiantava mais chorar, não adiantava mais desmaiar, não adiantava mais me esconder.

E eu corri rapidamente pelo quarto em direção à porta para correr até a sala de operação. De uma forma ou de outra eu ficaria ao lado de Ricardo e apertaria suas mãos. Eu o amava ainda, da forma mais profunda que se possa amar uma pessoa. Eu carregava uma criança de Gabriel mas... Não deixaria Ricardo sozinho e desamparado.

Era hora de ser forte. A fiação que me monitorava na cama foi se desprendendo das regiões do meu corpo dolorosamente. No aparelho, eu estava morta, meus batimentos cardíacos estavam zerados e o ruído era agudo e ensurdecedor da máquina demoníaca apitando e chamando os enfermeiros.

Eu abri a porta com força e me libertando, voltando à vida com seus problemas, e a partir dali eu enfrentaria cada um deles com maestria.

Patricia ainda me puxava inutilmente pelos braços e eu me desprendia dela com facilidade.

-Julia, você precisa voltar pra cama...

E eu sentia meus pés descalços no frio do chão de mármore do corredor da cor bege claro.

Eu procurava pelas portas e placas no alto alguma indicação de onde se encontrava a sala de operação. Eu estava desorientada, mas fortalecida, sabia o que fazer e não desistiria.

Pela visão periférica, podia perceber os médicos em seus jalecos brancos andando com passadas rápidas lendo prontuários em pastas azuladas. Era tudo tão frenético que ninguém me percebia verdadeiramente além de Patricia que ainda me puxava e exigia minha atenção.

-Ju?

Foi quando olhei a procura da voz grave e agradável que havia me chamado. E quando mergulhei naqueles olhos azuis penetrantes, me lembrei do meu pesadelo aterrorizante.

Gabriel!

Os Cinco (EM REVISÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora