Capítulo 11 - Julia

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Passei levemente as pontas dos meus dedos da mão direita pelo tecido grosso e generoso da minha cama em algodão confortável e macio. Com minha outra mão fiz pressão cuidadosa e lenta no meu recém terminado curativo. Meu sangue não mais expelia sua textura viscosa e exalava seu teor ferroso pela abertura de minha pele cortada.

Mas eu sentia como se o sofrimento e a solidão estivessem criando raízes densas, profundas e longas no meu coração mártir.

Aquela altura, eu já tinha plena consciência de minhas decisões imaturas e irresponsáveis. Minha situação calamitosa era uma resposta espinhosa e áspera dos deuses dos céus.

Escolher levar até onde desse uma relação amorosa falsa, míope e oca com Ricardo, escondendo-lhe meu amor por Gabriel, foi trilhar por uma rota que verdadeiramente não existia.

Quando preferi andar na passarela de vidro por sobre o abismo negro, assumi todos os riscos. E a vida tinha me fornecido um ultimato, me forçando a retroceder e escolher.

Isso porque mesmo quando soube de minha gravidez precoce, um presente de grego fornecido pelo destino implacável, continuei a seguir na passarela de vidro.

Até ela rachar.

Agora estava sendo engolfada pelo líquido viscoso e grudento da dor, tentando retirar em vão os cacos de vidro afiados da passarela recém rompida alojados nas regiões mais frágeis de meu corpo.

A verdade se impunha para implodir minha insensatez e imprudência. Ela me dava duas opções possíveis, eliminando do meu horizonte um futuro simples e feliz com Ricardo e meus amigos.

Ou eu seguia com minha criança ao lado de Gabriel e abria mão dos meus amigos,ou dava cabo de minha própria vida. Porque não haveria possibilidade crível de eu manter uma coexistência pacífica entre as duas pessoas que eu mais amava.

Porque uma rivalidade faiscante prestes a explodir estaria rotineiramente a espreita e eu não suportaria isso.

O que me restava?

Eu saberia viver longe de Paty, Tadeu e Etan?

Eu saberia viver longe de Ricardo?

Haveria a possibilidade de eu promover meu suicídio e manter meu filho vivo? Uma morte durante o parto?

Talvez nem mesmo a mais dolorida das mortes fosse capaz de superar uma sensação daquelas. Um afogamento, um corpo em chamas ou golpes de facadas... Quaisquer uma dessas possibilidades me mostraria um caminho menos sofrível que aquele. Porque eu sabia que depois da morte não se vive mais, depois da morte não se sente mais dor. O que significa que a única forma de eu cessar meu sofrimento era dar cabo da minha própria vida.

Talvez suicídio fosse o meu beco sem saída. Talvez sempre tenha sido assim e eu nunca tenha quisto perceber com clareza.

Fechei meus olhos derramando mais uma lágrima, seca e desidratada o suficiente para não poder mais chorar.

E vi Ricardo mutilado, sem uma perna em minhas pálpebras.

Sufoquei um grito que pareceu ter ecoado e zunido dentro de mim, perpassando em meus ouvidos um estampido incômodo.

Foi quando vislumbrei no alto a televisão que estava em plantão de notícias noticiando o caso... Flashes e cortes de cenas de um cinegrafista amador mostrando o incêndio eram exibidas enquanto a jornalista divulgava informações a respeito do acidente.

"Não temos informações sobre mortos, neste momento. O único fato confirmado agora há pouco é que a polícia está investigando as causas do acidente... Nenhuma possibilidade está descartada. Nem mesmo a de ter tido sido cometido uma destruição incendiária criminosa nessa noite. Já tentamos entrar em contato com Flavia Barreto Bittencourt mas ela não atendeu aos nossos telefonemas. Temos fontes que nos afirmam que ela está em um hospital de grande circulação da região aqui perto, acompanhando seu filho Ricardo que sofreu um acidente de carro na noite passada. O dia está amanhecendo e os bombeiros ainda não puderam eliminar todos os focos do incêndio. Daqui a pouco, voltamos com maiores informações direto aqui da boate da rica família Barreto aqui do Centro da cidade de Santa Fé, no interior de São Paulo."

Eu, repentinamente, me agitei na cama e pus meu rosto entre os meus joelhos dobrados, impedindo mais um fluxo ininterrupto de lágrimas. Olhei para minhas unhas destroçadas e roidas, procurando uma distração que me fizesse esquecer. Que me levasse de volta ao passado.

Onde eu poderia ajudar Ricardo a atravessar a grave situação pela qual ele e sua família passavam. Algo que já não era mais possível atualmente.

Quando levantei o rosto, apoiando meu corpo vacilante e incapaz pelas mãos agarradas na borda da cama, vi uma luz tremeluzir e soube que a televisão tinha sido desligada.

Ouvi alguns cochichos conhecidos à direita e olhei para o lado, quando eles encontraram meus olhos e soube que estiveram me espiando silenciosamente.

-Julia... - Etan ensaiou uma fala, pondo o dedo indicador no alto.

Eu estendi a palma de minha mão pedindo pra que eles esperassem, e meus olhos marejaram enquanto meus lábios se curvaram em um sorriso, já desacostumdos em fazer um movimento desses.

Etan estava vestido com uma camisa dos Lakers com seu boné azul dos Thundercats favorito e os cabelos cheios escuros escondendo a região acima de seus olhos, Patricia lhe abraçava por trás com seus cabelos soltos vivos novamente, me observando com seus cílios longos reforçados pelo lápis negro, seu corpo escultural delineado em um vestido longo rosa púrpura, Tadeu punha seus óculos antigos com lentes fundo de garrafa e o esparadrapo no meio unindo os dois extremos, as mãos dentro dos bolsos de seu jeans claro, sua camisa em vermelho vivo com uma barra de carregamento com Loading escrito no topo em amarelo contrastante.

Todos sorriam para mim, vestidos da mesma forma como fariam se tivéssemos voltado no tempo para a época em que nos tornamos amigos.

-Ju, nós precisamos conversar... - disse-me Tadeu com suas mãos me acariciando em cafunés a cabeça.

E seu tom era um mix de confiança e alegria. Uma temeridade ainda pairava no ar, mas ela não era uma nuvem negra que nos oprimia como tinha sido desde então. Era residual, um resquício dos tempos sombrios que passamos.

E eu intui que meus amigos tinham vindo me avisar que, à despeito dos tristes acontecimentos, a tempestade estava passando...

Uma luz se agitou em meu íntimo e eu passei a ouvir esperançosa...

Os Cinco (EM REVISÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora