Capítulo 1

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Com os pés calejados sobre o parapeito da janela, começou a olhar o céu e a admirar as estrelas que, mesmo de tão longe, pareciam, com seu brilho, afastar a escuridão densa que cobria o mundo.

Nos dias que se vivia, o ar era mais pesado, quente e sufocante. Não se sentia o alívio de uma brisa fresca há tempos.

Justamente por isso, Anabele era grata pelas noites e costumava adormecer, olhando com o coração pesado para o céu infinito que os cobria. Estava sempre cansada ao final do dia, assim como todos os outros ordinários, fossem homens, mulheres ou crianças, mas mesmo assim, sempre levava mais tempo do que gostaria para pegar no sono. Era dormindo, com a mente em outra dimensão, que se sentia mais feliz. Podia fugir do cenário árido e desolado em que o mundo havia se tornado e esquecer todas as perdas e sofrimentos do dia a dia e acordar com o coração renovado de esperança. Esperança essa que lhe escapava no minuto em que, acordando, retornava a si e via a mãe, já tão cansada e não mais tão jovem, preparar-se para mais um longo dia sob o sol escaldante.

Ultimamente, porém, nem mesmo nos sonhos parecia encontrar sossego. Seu sono era inquieto e virava-se constantemente na cama, despertando agitada diversas vezes durante a noite. Tinha pesadelos em que a terra, com tudo o que há nela, era engolida pela escuridão. Nessas ocasiões, acordava desesperada, como se uma sentença de morte houvesse sido decretada sobre todos e agora fosse só questão de tempo até que o carrasco chegasse.

O que mais a assustava, contudo, era que não somente ela vinha tendo tais pesadelos. Durante o dia de trabalho, conversava com outros e com uma frequência cada vez maior, comentavam sobre as noites mal dormidas e os sonhos estranhos. Pior que os sonhos, na verdade, eram as sensações que se seguiam a esses pesadelos, tão difíceis de serem explicadas, mas completamente desagradáveis. Um gelo no peito, um medo aterrorizante de algo que não conseguiam definir ao certo, que lhes fugia à compreensão.

Até mesmo aquele forasteiro havia comentado sobre o assunto. Ah! O forasteiro... Henry Winch. Chegara da segunda província, a mais perto dali, havia seis meses. Não falava muito sobre suas viagens, agora tão raras, mas tinha se enturmado muito bem. Apesar do sarcasmo, de seu humor ácido e da língua afiada, tinha um charme quase irresistível.

Anabele, ao contrário de todas as outras pessoas, travava uma batalha interna em relação ao que sentia por ele. É claro que sabia que era bonito, inteligente, engraçado e tudo mais, o que qualquer garota procura em um cara, mas achava que ele era muito consciente de suas próprias qualidades e menos do que deveria em relação a seus defeitos, o que fazia com que falasse, andasse e agisse de uma maneira única e extremamente segura. Parecia não possuir qualquer espécie de vulnerabilidade, o que a irritava profundamente. Também não lhe agradava muito o fato de ele ter surgido, ganhado a confiança de toda aquela província e mal falar sobre si mesmo. Tudo o que sabiam era o pouco que havia contado: após sua família ter falecido na construção da muralha, havia conseguido fugir para ali. Não que a terceira província fosse melhor do que as outras, mas quando se perde tudo, qualquer coisa parece melhor do que o nada que se tem. Por isso, ninguém insistia no assunto, todos já haviam perdido alguém na construção, podiam imaginar o que ele sentia.

Balançou a cabeça e tentou afastá-lo de sua mente, mas os pensamentos insistiam em sua direção. Não suportava muito tempo perto dele, mas quando se afastava, logo se notava o procurando, ansiosa por vê-lo de novo.

Henry parecia já ter percebido o efeito que causava nela e isso parecia diverti-lo, o que a deixava ainda mais perturbada. Durante todo o dia de produção, ele parecia procurar estar perto dela. E Anabele não conseguia afastá-lo.

Suspirou e virou-se na cama, preparando-se para dormir. Um leve estremecimento percorreu seu corpo quando pensou nos pesadelos que a aguardavam.

— Não tenho escolha, suponho — falou em voz alta, para si mesma. — Escolha é algo do qual já quase não nos lembramos mais. Fechou os olhos e mergulhou na escuridão.

Sombras do MedoOnde histórias criam vida. Descubra agora