Capítulo 4

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Tinha o rosto na terra, as mãos cobrindo os ouvidos e tentava voltar a si. Após a gigante sombra e o estarrecedor barulho, todos haviam caído ou se jogado ao chão, tentando se proteger, instintivamente, de algo que não tinham ideia do que poderia ser.

Após alguns minutos, quando o gelo que havia virado seus ossos começou a derreter e retomou a consciência, Anabele tentou se mover e percebeu que alguém a protegia com o próprio corpo. Desvencilhou-se surpresa e corou quando viu quem se afastava gentilmente.

— Não fi que convencida achando que eu faria isso só por você, Anabele Godhet — disse Henry, sorrindo. — Sou um herói, um cavalheiro. É mais forte do que eu.

Anabele sentiu uma pontada de frustração que não soube explicar. — Obrigada! — virou-se, deixando-o sozinho.

Henry observou-a se afastar e mais uma vez achou incrível a graciosidade com que andava. Ela contrastava com o cenário, não parecia fazer parte dele. Tudo o que via era uma mistura de marrom e pouco verde, banhada por uma forte luz que vinha novamente do sol. Todos os ordinários ali presentes pareciam compartilhar da exaustão da terra, imundos e suados, e agora sussurrando assustados sobre o que acabara de ocorrer.

Via altas plantações, os restos de antigas casas e algumas recém construídas. Meros conjuntos de tijolos.

Não havia muito mais por ali. A paisagem seca e árida se arrastava por toda a região e por todo o mundo também, sabia Henry. Exceto, é claro, o que havia do lado de dentro das muralhas. Lá, havia algumas indústrias responsáveis pela produção de energia e de outros bens de que necessitavam, como roupas, certos produtos alimentícios e de higiene e materiais para construção, que eram enviados uma vez a cada duas semanas em pequenas quantidades para as províncias.

Os ordinários que trabalhavam nas fábricas, viviam dentro delas e recebiam o que precisavam para sobreviver. Eram selecionados pela força, idade e disposição que demonstravam. A partir do momento em que entravam, só saíam mortos. Quinzenalmente, alguns corpos eram enviados de volta para as províncias, com o suprimento a ser distribuído entre as casas. A família que recebia o falecido, ganhava também um pouco mais, até mesmo um pouco de carne. Como não tinham muito, eram obrigados a ficar gratos pelo excesso recebido, ainda que isso simbolizasse a morte de alguém querido.

No imenso espaço dentro das muralhas, havia também animais criados pelos ordinários que trabalhavam nos terrenos das capitais, como fonte de leite, ovos e carne para os singulares.

No começo da divisão, restavam ainda uns poucos animais que haviam sobrevivido aos desastres naturais em todo lugar. Os ordinários haviam tentado criá-los, mas logo perceberam que o que investiam para fazê-los crescerem e engordarem era sufi ciente para alimentarem a si mesmos. E não podiam esperar.

Assim, haviam comido tudo o que restara de vida comestível. Henry pensou na expressão por um segundo. Vida comestível. Por mais estranho que soasse, era algo real. A palavra vida assumira um significado absolutamente diferente de antes, concluiu. A menos que se tratasse da vida de um singular, é claro.

Sua atenção voltou, contudo, para Anabele que se afastava. Um anjo no inferno. Tão pequena, não aparentava ter mais que dezessete anos, mas sabia que completaria vinte e um na próxima semana. Por um momento, esqueceu-se do que havia acabado de ocorrer, de toda a escuridão e maldade que haviam presenciado, de tudo o que viviam e focou somente em seus próprios sentimentos. Correu atrás dela.

— Anabele! Espere!

A moça parou no lugar e virou-se rigidamente em sua direção. Henry notou que ela tinha o delicado rosto branco, já bem bronzeado pelo trabalho sob o forte sol, coberto de poeira do chão, e os grandes olhos verdes realçavam na sujeira. Os curtos e pretos cabelos também estavam grossos com a terra.

Sombras do MedoOnde histórias criam vida. Descubra agora