A velha porta de madeira estava entreaberta. Do interior da casa não se ouvia um único ruído. Todo o barulho vinha do lado de fora. Correria, grito, coisas sendo destruídas. De vez em
quando, um berro assustador do céu.
— Alice? — chamou Amanda, seguindo Vincent de perto.
Empurraram a porta e adentraram na escuridão do ambiente.
— Anabele? — arriscou a mãe. Vincent, tateando as paredes, alcançou o interruptor e o pressionou. — Não adianta, já passam das dez horas, querido — lembrou-o Amanda, docemente.
— Ela não está aqui — sua voz estava dura.
— Ela não está aqui — sua voz estava dura.
Antes que Amanda pudesse responder, escutaram um barulho. Uma cadeira havia caído.
— Alice?
Caminharam até a origem do som. De perto, conseguiram enxergar a senhora tentando apoiar-se na cadeira. Amanda agachou-se rapidamente.
— Alice, Alice, querida. Venha, peguei você. Vincent, ajude aqui.
Com cuidado, os dois levantaram-na e a colocaram sentada em uma pequena poltrona rasgada.
Vincent apontou com a cabeça os pés da ordinária. Estavam azulados e duros. A julgar pelos machucados ainda não completamente curados e a ausência de reclamação de dor, os pés já deviam estar dormentes.
— Eu sabia que viriam. Não fugi, sabia que Anabele não me deixaria sozinha.
Amanda e Vincent entreolharam-se. Alice percebeu o significado daquele gesto.
— Onde está a menina? O que está acontecendo lá fora?
— Não conseguimos encontrar Anabele. Achamos que ela teria vindo ajudá-la — respondeu relutantemente, Vincent, como se brigasse com as palavras.
— Mas ela não teria fugido sem vocês. Não há ninguém nesse mundo com quem ela se importe mais.
— Aparentemente há — Vincent caminhou rigidamente e socou a parede mais próxima.
— Vincent, querido, entendo você não gostar de Henry, mas se Anabele foi a algum lugar com ele, tenho certeza de que houve um bom motivo. Conheço minha filha e confio nela. Acho que você também deveria.
Ele cerrou as sobrancelhas e a encarou por um momento. Logo desviou o olhar, abaixando a cabeça, atingido pelo peso das palavras de Amanda.
— Então é na casa dele que devemos procurá-la — disse finalmente, já mais calmo.
— Sim — assentiu Amanda, com um suspiro.
— Antes vocês precisam se preparar. Peguem algumas roupas de frio que tenho no quarto. Não são muitas, mas se saírem assim, vão congelar lá fora.
Ambos olharam para si mesmos para verificar o que vestiam. Amanda trajava ainda as roupas que usava para dormir: calças de um fino tecido cinza e uma grande camiseta branca que pertencera ao marido. Nos pés, os tênis também cinzas que estavam ao lado da cama. Vincent também parecia ter tido seu sono interrompido, com a camiseta também branca grudada ao corpo e jeans escuros.
— Vá pegar, Vincent. É na primeira porta à esquerda, saindo da sala. Pegue tudo o que precisarem. Devo ter alguma coisa do meu falecido filho para você.
O moço assentiu com a cabeça e caminhou cauteloso no escuro, seguindo as orientações da senhora.
— Amanda, vá até a cozinha e pegue o que tiver. Não há muito, mas Anabele trouxe algumas coisas que ainda estão aí. Leve tudo. Não sabemos o que acontecerá a partir de agora.
— Você está certa. Deveria ter pensado nisso também. Se tivermos oportunidade passarei em casa.
— O que tenho deve dar para vocês três por uns dias.
Amanda ajoelhou-se em frente à senhora e começou a esfregar seus pés, numa tentativa de aquecê-los.
— Não pense nem por um segundo que deixaremos você aqui sozinha — disse docemente.
Alice riu, um riso de desespero.
— Você e sua filha são duas preciosidades. Agradeço muito por morar do mesmo lado das muralhas que vocês, ainda que esse lado seja o de fora, mas não há como me levarem junto. Antes já estava andando com dificuldade, agora mal sinto meus pés. Não vou atrasá-los.
— Não. Não teremos essa discussão. Vou deixá-la aquecida enquanto procuramos Anabele. Depois viremos buscá-la e você irá conosco para onde formos.
Dando a discussão por encerrada, Amanda levantou-se e caminhou até a cozinha, onde começou a procurar por suprimentos rapidamente. Abriu algumas portas, afastou uma cortina, sobressaltando-se com cada barulho que vinha de fora. Sempre barulho de destruição.
Improvisou uma trouxa com a cortina e jogou os alimentos que pôde encontrar: algumas garrafas de água, pacotes de farinha, duas garrafas de leite e latas de grãos. Abriu a geladeira e encontrou uma tigela de mingau. Reconheceu como sendo a preparada por ela naquela manhã. Sentiu os olhos marejarem.
Vincent reapareceu na sala com algumas roupas nas mãos. Amanda esfregou os olhos, fechou a sacola que improvisara e foi até a sala também.
— Vincent, precisamos aquecê-la — sussurrou para o amigo, antes que alcançassem a poltrona.
Vincent trazia uma coberta nos braços. Usou-a para envolver Alice.
Colocaram três pares de meia nos pés da ordinária e cobriram-nos com uma manta.
Um grito veio do céu. Alto, satisfeito e horrendo. Alice gritou com o terror que aquele som incutia-lhes. Cobriram os ouvidos, mas o terror já havia penetrado seu íntimo. Todos se perguntaram se mais alguém teria desaparecido, e torceram para que não tivesse sido Anabele.
Vincent correu até a janela, desnorteado e soltou uma exclamação.
— O que foi? — perguntou Amanda, nervosa, enquanto respirava pesadamente tentando controlar os sentidos.
—Anabele está lá fora.
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Sombras do Medo
General FictionEm um futuro pós destruição em massa, provocada pelas guerras humanas e desastres naturais - para os quais os humanos também contribuíram grandemente - o mundo é dividido em 5 grandes regiões. Em cada uma delas vivem ordinários e singulares, pessoas...