Capítulo 44

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Anabele corria sentindo a brisa quente aquecer seu rosto. Estava completamente coberta por poeira e cinza, como todo o resto do mundo.

Via escombros por toda parte, misturados aos corpos de Venoms e pessoas. Buscava em cada um deles os rostos familiares de Davi e de Vincent, ao mesmo tempo em que esperava não encontrar. Ela parou, ofegante, em frente ao último pedaço da construção que um dia fora a muralha.

Esfregou os olhos que ardiam por conta da fumaça que ainda pairava sobre a região. Percebeu, com alívio — ou com o que mais se assemelhava a isso — que ela se movia normalmente, dispersando-se com o vento muito bem vindo daquela noite.

Inspirou profundamente e apoiou as mãos sobre os joelhos, exausta por correr, por fugir e por todo o resto. Olhando ao redor, pensou em como, ironicamente, Arthur fora quem descobrira o ponto fraco fatal das criaturas e como sacrificara a obra de sua vida, que até o dia anterior era motivo de celebração.

Na verdade não sabia como não haviam percebido antes. Se a maldade era o que alimentava os Venoms, o que os deixava mais fortes, somente a bondade poderia destruí-los.

E o primeiro sinal significativo dela após tanto tempo de divisão egoísta e autoritária, fora com a abertura dos portões reunindo finalmente ordinários e singulares, por um motivo: a sobrevivência mútua.

Fora esse o gesto que enfraquecera os Venoms, tirando-lhes a utilidade das asas. Mas mais do que isso, pensou Anabele, fora esse o gesto que permitira que Arthur descobrisse o que fazer: destruir as muralhas das cinco regiões.

E embora houvessem vencido aquela guerra, fazê-lo havia sido mais difícil do que parecia.

As dificuldades práticas estavam claras, estampadas nas milhares de mortes ocorridas naqueles únicos dias. Mas Anabele sabia que era mais do que isso.

Derrubar as muralhas significava não somente destruir o que fisicamente separava as pessoas, mas destruir a ideia, antes certa e absorvida, de que essas pessoas deveriam estar separadas.

O que antes simbolizava a diferença e o egoísmo passara a simbolizar a união, a isonomia e a solidariedade — tudo o que as criaturas não poderiam suportar, visto que eram feitas da maldade presente no homem e alimentadas por ela.

E contra todas as chances, a bondade vencera. Os Venoms estavam finalmente mortos, ou adormecidos novamente, Anabele não sabia dizer. Se haviam despertado uma vez, por que não de novo?

Ela chutou o chão, perturbada pelo pensamento.

Agora eles, os humanos, sabiam o que precisavam fazer para evitar que uma segunda guerra acontecesse. Só não conseguia confiar totalmente que o horror daqueles dias perpetuar-se-ia com a importância que tinha e as lições que trouxera.

Esperava que as pessoas não esquecessem tão facilmente. Mas suspeitava que o fariam.

Ergueu-se e tendo recuperado o fôlego, recomeçou a correr.

Recomeçou sua busca.

Parou subitamente quando distinguiu uma silhueta dentre muitas outras, mas aquela vestia um longo casaco, antes preto, agora coberto pela poeira. Sentiu o coração parar. Aquela silhueta estava ajoelhada no chão, com a cabeça entre as mãos.

Anabele deu passos incertos entre os destroços até chegar a Arthur. Tinha medo do que veria. Quando o alcançou, também caiu de joelhos, de frente para ele.

Davi estava caído, inconsciente, sob o enorme corpo de um Venom.

Finalmente viu-se impotente contra as lágrimas. Deixou que rolassem. Levou a mão sobre o rosto machucado, mas ainda bonito de Davi. Não respirava. Ele ou ela.

Não pode reprimir o soluço. Chorou copiosamente, tal como Arthur o fazia, sobre o corpo.

— Perdão, Arthur — disse com a voz fraca, sentindo o peso da culpa esmagá-la.

O presidente levantou o rosto pela primeira vez desde que chegara ali. Estava contorcido em uma expressão de dor. Por um momento, Anabele pensou que seria atacada ali mesmo. Os próprios olhos de Arthur estavam vermelhos, agressivos.

Abaixou a cabeça e encolheu-se, esperando pela explosão do homem.

— Eu... a agradeço.

Anabele o encarou, surpresa demais para reagir. Mas ele continuou:

— Eu precisei perder meu filho para entender quantos outros filhos meus atos têm custado. Eu errei com ele, errei com você, errei com todos — Arthur inspirou por um momento, tentando controlar a voz embargada. — Davi foi uma pessoa melhor do que eu jamais serei. Graças a você.

Ela não conseguiu responder. Estava entorpecida e fazia um esforço descomunal para digerir as palavras e seu significado.

— Gostaria que Davi pudesse ter tido um futuro — Arthur levantou-se, e mesmo sujo e quebrado, sua figura era austera e autoritária. — e me deixaria contente que você estivesse com ele.

Anabele e ele encararam-se por um momento e a jovem percebeu que na verdade a agressividade dos olhos cinza não passava de desespero, desolado e arrependido.

— Tenho a impressão de que coisas estranhas acabaram de acontecer — uma voz rouca e fraca disse.

Anabele e Arthur olharam imediatamente para baixo.

Ela riu, entre soluços, abaixando-se para beijar-lhe os lábios. Beijou cada centímetro de seu rosto, tentando ignorar a sensação de que a qualquer momento o coração explodiria, por conta da mistura de alívio, felicidade e amor que transbordava.

— Você está vivo! Você está vivo! — repetiu, compulsivamente, rindo enquanto as lágrimas continuavam a descer.

Arthur ajoelhou-se novamente. Seu rosto parecia dez anos mais jovem. Ele não disse nada enquanto tentava com toda a sua força empurrar o Venom de cima de Davi, mas Anabele viu uma lágrima escorrer.

Com o braço livre, Davi tocou Arthur.

— Pai — o presidente virou-se lentamente para ele. — Ouvi dizer que seremos uma família.

Anabele riu e percebeu que Arthur continha-se para não fazer o mesmo. Mas ainda assim, um sorriso discreto enfeitava seu rosto. 

— Senti que era o momento de dar minha benção.

— E você a mantém agora que sabe que eu não estou morto?

Anabele pensou ter visto uma ligeira sombra de vergonha passar pelo rosto de Arthur.

— Desde que espere essa menina crescer um pouco antes de me dar um neto.

Anabele corou, mas Davi riu.

— Essa é uma promessa que eu posso cumprir — Arthur agora segurava a mão do filho. — E mais impressionante ainda — continuou Davi, em seu costumeiro tom de ironia. — é que fui salvo por esse monstro grandalhão aqui — disse, agora batendo a mão sobre o Venom. — Não fui atingido por nada com a explosão.

— Vou tirá-lo daí — dizendo isso, Arthur inesperadamente inclinou-se e beijou a testa do filho. Em seguida, afastou-se a passos largos.

— Gostaria de poder beijá-la.

Anabele riu.

— Arrá! Você não pode me ver corar debaixo de toda essa sujeira.

Foi a vez dele rir.

— Vamos ter tempo para tudo isso — ele sorriu, sedutor, mas no instante seguinte, sua expressão havia mudado. — Ane... você encontrou Vincent?

Anabele sentiu-se sendo apunhalada. Arfou com a lembrança e com a percepção de que o havia esquecido por um momento.

— Não.

— Vá.

— Não posso deixá-lo sozinho.

— Prometo não fugir — ele disse, sorrindo.

Anabele fez uma careta com a piada de mau gosto, mas assentiu, com o coração novamente apertado.

Sombras do MedoOnde histórias criam vida. Descubra agora