— Quanto falta? — perguntou Vincent, pela terceira vez.
— É logo ali — respondeu, ofegante.
Ela e o amigo traziam Alice amparada em seus ombros. A senhora sustentava pouquíssimo do seu leve corpo por conta de seus pés machucados.
Mal sabia ela que Anabele tinha o lábio inferior aberto em decorrência das mordidas que se dava para conter a dor que também sentia nos pés. Ainda assim, andavam o mais rápido que podiam.
Os locais onde antes havia altas chamas estavam cobertos por finas camadas de gelo. O fogo, contudo, começava a diminuir. Pessoas começavam a se abraçar, assustadas, no meio da rua e a planejarem a volta para casa.
Não pareciam preocupadas em entender nada daquilo. Era o suficiente que as coisas voltassem ao que conheciam por normal.
E se acontecesse novamente, qual o problema em fugir de novo? Anabele via com tristeza a reação dos ordinários. Estavam tão acostumados à tragédia que reagiam perfeitamente bem a ela: conformavam-se e esperavam que acabasse. Desconfiava, inclusive, que estivessem convencidos — ou quase — de que eram merecedores dos terríveis acontecimentos.
Anabele sabia mais do que isso. Gabou-se amarguradamente por ser uma das únicas pessoas a ter visto a criatura, e pressentia que ela voltaria. As coisas estavam piorando gradativamente. Seria questão de tempo até que o caos atingisse seu auge.
— Ele é o único que parece feliz. É quase reconfortante, não é mesmo? — comentou ela, distraindo-se ao olhar para Jhou que corria a sua frente.
Após decidirem entrar na capital, Anabele havia corrido até a casa ao lado da sua para pegar Jhou. Não o deixaria sozinho quando o mundo estava desabando.
Encontrara-o encolhido em um canto da sala escura. Tremia, porém ao vê-la, havia corrido em sua direção, abanando a cauda como de costume.
Mesmo assustado, o cachorro parecia grato por finalmente poder correr livremente, após alguns meses de passeios noturnos escassos e breves.
Agora já podiam ver a casa onde encontrariam o túnel.
— Achei que não fosse me contar nunca sobre ele — disse Amanda, que vinha a seu lado.
— Como assim? Você também sabia sobre ele? — perguntou Anabele, indignada.
— Você jura que pensou que enganaria alguém com suas escapadelas noturnas carregada de água, comida e roupas cheias de pelos?
Anabele riu.
— Enganei o Vincent.
— Isso está virando rotina, aparentemente — respondeu o amigo, sem olhar para ela.
— Vincent ... — começou Anabele, com a voz triste.
Amanda balançou a cabeça negativamente para a filha, em um sinal para que ela não continuasse.
— Enfim, sempre quis que você tivesse um cachorrinho — continuou Amanda, calmamente. — Sabia que fariam uma ótima companhia um ao outro. Vocês dois têm uma alma generosa.
Anabele sorriu.
— Antes fôssemos mais cachorros do que humanos.
— Chegamos? — arriscou Vincent.
Anabele fez que sim. Entraram cuidadosamente na casa escura. Colocaram Alice sentada em uma cadeira empoeirada que Amanda encontrara, tateando o ambiente.
— E agora? — perguntou ele.
— Agora abrimos o alçapão que fica em algum lugar desse chão e caminhamos até a muralha.
— Parece simples — brincou a mãe.
— Será. Acho que a luz que vem lá de fora é suficiente para que eu encontre.
Anabele ajoelhou-se sobre o chão e começou a tateá-lo. Em poucos minutos exclamou:
— Aqui. Encontrei o puxador — acenou, convidando-os a se aproximarem.
— AI! — gritou.
— O que foi? — perguntou Amanda, assustada.
— Não me lembrava de ser tão pesada. Bom, foi o Henry que abriu hoje mais cedo, não saberia dizer o peso, de qualquer forma.
Vincent ajoelhou-se ao seu lado e em silêncio puxou a porta. Ouviram o chão ranger, mas nada mudou. Ele abriu e fechou as mãos novamente sobre o puxador e empregou mais força na segunda tentativa. Nada.
Então com as duas mãos puxou o mais forte que pode, o que não era pouco, e a porta ainda assim não se abriu.
Irritado, esmurrou-a. Ficou parado com as duas mãos sobre ela, respirando fortemente.
— Você está bem? — perguntou Anabele cautelosamente.
— Há espaço para uma chave aqui — disse de súbito Vincent, passando as mãos sobre a superfície que deveria ter sido aberta.
— Ah, não! Foi trancada! — sussurrou Anabele, com a voz embargada.
Vincent levantou-se bruscamente e deu passos rígidos até a porta aberta da casa. Amanda abraçou a filha.
— Está tudo bem, querida.
Anabele forçou-se a manter a voz estável. Acabou soando mais rude do que pretendia.
— Henry está preso lá dentro, mãe, e nós estamos condenados aqui fora. Como pode estar tudo bem?
— Não está — falou apressadamente, Vincent, fechando a porta atrás de si com a expressão mais assustada que Anabele já vira em seus olhos escuros.
— O que foi? — ela perguntou, levantando-se.
— Acriatura... há mais delas. E estão lá fora!
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Sombras do Medo
General FictionEm um futuro pós destruição em massa, provocada pelas guerras humanas e desastres naturais - para os quais os humanos também contribuíram grandemente - o mundo é dividido em 5 grandes regiões. Em cada uma delas vivem ordinários e singulares, pessoas...