Capítulo 2

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Henry tinha certeza de que não estava em seus melhores dias desde que chegara à terceira província. Seu peito era casa de uma infinidade de sentimentos, a maioria deles nunca antes experimentados. A sensação era de que estava vivendo pela primeira vez.

Estar vivo doía, entretanto, e ninguém nunca o avisara sobre isso. Era muito mais fácil continuar com os olhos fechados, mas uma vez que já os havia aberto, parecia não ter mais volta.

Henry não conseguia olhar ao seu redor e não sentir o rosto arder como se houvesse sido esbofeteado. A pior parte, porém, era perceber que fora de si mesmo que apanhara, de uma versão melhor do que a do homem que sempre fora.

Às vezes, conseguia ignorar toda essa bagunça por algumas horas e manter a cabeça clara e leve, como estava familiarizado. É claro que continuaria imerso em todo o desconforto a que estavam acostumados a viver, mas a cabeça sempre fora a principal morada de uma pessoa.

E a forma mais eficiente de manter-se tranquilo era na presença dela. Não era fácil explicar o que acontecia quando estavam juntos, e mesmo não podendo expor a ninguém, era difícil explicar até para si mesmo.

Não era o fato de Anable ter os olhos mais incrivelmente verdes que já vira, ou o fato de ter a pele queimada mais macia que já tocara. Não era ao menos a boca rosada ou a forma como suas bochechas sempre denunciavam o que sentia, ainda que ela nunca pronunciasse uma palavra a respeito.

No final das contas, ele não podia definir ao certo o motivo que fazia com que Anabele não saísse jamais de seus pensamentos. Quanto mais ele pensava, mais ideias tinha. Talvez fossem motivos demais para listar.

Seria estranho dizer que com ela, o que sentia era... felicidade?

Paradoxalmente, caso se permitisse pensar quando estava com Anabele, sentiria a vergonha e a culpa esmagando-lhe os ossos. Apesar da baixa estatura da moça, era ele quem se sentia pequeno perto dela, diante da grandeza que sua bondade e empatia lhe conferiam.

O peito apertava quando pensava em seu passado, e apertava ainda mais quando pensava sobre o futuro. Tinha tanta coisa a fazer, mas precisava, antes, fazer escolhas e enfrentar suas consequências, porém, o medo de perder Anabele... o medo de perder a chance de tê-la, impedia-o.

O que ela estava fazendo com ele? Henry gargalhou sozinho ao notar a situação em que estava, ao notar que o controle escapava por entre seus dedos.

— Você aí!

Henry reagiu rapidamente ao ouvir a voz do homem que o chamava. Seu olhar encontrou um soldado que caminhava em sua direção.

— Algum problema, engomadinho? — seu sorriso floresceu ao responder o singular. O olhar do outro, contudo, endureceu no mesmo instante. Parecia perigosamente inclinado a dar uma surra em Henry.

— Vou te dar um recado, seu boca grande, você não deveria estar aqui.

Henry arqueou as sobrancelhas e aproximou-se do soldado, de maneira ousada, mexeu na insígnia dourada, a gota que representava os singulares, e que enfeitava seu uniforme azul.

— Ah é? E posso saber quem vai me tirar daqui?

O maxilar do soldado moveu-se, mas ele respondeu com a voz fria.

— Não gosto de ser garoto de recados, então fico contente em saber que isso está para acabar. Você é o pior tipo.

Henry gargalhou.

— Nicolas, Nicolas, você é corajoso, admito, mas passa dos limites.

— Você está do outro lado da muralha, sujeito a tudo — o soldado sorriu, pela primeira vez.

Henry fez uma careta.

— Essa coisa de muralhas, de lados, não te parece um pouco superestimada?

— Concordo — assentiu Nicolas. — Mas em alguns dias você vai ter que mudar de ideia. Pessoal chegando, perguntado, fechando...

Foi a vez de Henry ficar sério. Deu um passo a frente e manteve seu rosto muito próximo ao do soldado, seus olhos faiscando.

— Vou acertar as contas com você.

— Estarei esperando — respondeu sorrindo. — Mas acho que a menina vai querer cortar fi la.

Levou um segundo para que Henry entendesse a quem Nicolas se referia. Quando o fez, pressionou o corpo do soldado contra a parede.

— Você não sabe de nada, seu cretino, não fale sobre ela...

Nicolas afastou o corpo do ordinário com um empurrão e acertou um soco em seu queixo. Henry desequilibrou-se, mas não caiu. Levou a mão ao rosto e deu um passo de volta em direção ao soldado que apontou o dedo em riste.

— Se você se aproximar de novo de mim, fica sem água por três dias — declarou.

— Henry! — Clara se aproximou correndo, com o pavor estampado no rosto — Afaste-se dele!

— Essa lição é para todo mundo — continuou Nicolas. — É especialmente para quem ainda não sabe quem é — acrescentou, lançando um olhar de puro desprezo a Henry.

— O que você fez? — Clara gritou, histérica — Henry, você está bem?

— Estou, estou — respondeu, afastando Clara de si. Nicolas também já se afastava, mas precisou respirar fundo para se acalmar — Estou bem.

— Por que ele te bateu? O que você fez?

— Nada...

— Esse soldado não costuma ser agressivo, por que ele te bateri...

— Caramba, Clara, já disse que não sei! — respondeu, mais ríspido do que gostaria. Nicolas conseguira deixá-lo uma pilha de nervos. Notando o olhar ofendido da moça, suavizou o tom — O que você está fazendo aqui? Daqui a pouco vão começar a distribuição.

Estavam muito afastados da área residencial e de plantio da província, e naquele local deserto, a não ser pelas muralhas, não receberiam nada.

— Eu estava procurando você — respondeu, com os olhos baixos.

— Não faça mais isso — retrucou de súbito. Diante do segundo olhar machucado de Clara, forçou-se a dizer algo gentil. — Você não pode correr o risco de perder sua água ou sua comida, está bem? É perigoso — disse, suavemente, controlando-se da melhor maneira que podia, vestindo uma vez mais a máscara de invulnerabilidade a que estava acostumado. — Eu precisava pensar um pouco, ficar sozinho, mas também dei bobeira.

Clara assentiu com o olhar preocupado.

— Agora vamos voltar porque preciso ver se continuo bonito o suficiente.

A moça riu.

— Acho que não vai ficar marca.

— Falam que cicatrizes são charmosas.

Clara riu mais uma vez.

— Tenho certeza que em você sim.

Mas Henry não estava mais escutando. Caminharam em silêncio até avistarem as filas que já se formavam a partir da muralha. Com um aceno automático da cabeça, afastou-se de Clara.

O queixo latejava lentamente, porém sentia que Nicolas havia o afetado de outras formas. Formas muito mais profundas e dolorosas. Estar vivo doía, e ouvir verdades também, percebeu.

Avançou a passos largos procurando com o seu, o único olhar que poderia acalmá-lo.

Sombras do MedoOnde histórias criam vida. Descubra agora