Me Faça Lembrar ⚣

Capítulo 35.5 - Presente ou lição

O histórico da família Wingarden despertava certos burburinhos na cidade pequena de Elburg.

A mãe de Harvey era filha única e morava na cidade de Utrecht com seus pai, que era banqueiro, e sua mãe, dona de casa, sempre muito presentes e super-protetores. Tivera uma criação católica, não tão rígida a ponto de despertá-la um desejo de rebelião, mas não tão libertária para lhe deixar ser algo além de uma esposa e mãe de classe e elegância. E era exatamente isso o que ela queria ser, se quisesse ser sincera; por isso, gostava de passar suas férias na casa de sua avó em Elburg, onde era ensinada tricot, crochet e algumas receitas de deliciosas comidas passadas de geração em geração. Sonhava em casar-se com um vestido longo, branco e florido, em uma igreja inspirada na arquitetura artísica das igrejas italianas; queria dançar valsa com seu pai, e jogar seu bouquet para suas amigas, que sabia que estariam se mordendo de inveja pelo casamento perfeito; a garota tinha até um caderno, onde colava fotos de revistas de casamento e roupas para quando o belo dia chegasse. No entanto, meninas um dia se tornam mulheres, e os seus sonhos e desejos se modificam para adaptar-se a uma nova maturidade.

O pai de Harvey nasceu em Elburg, filho de um pescador e uma garçonete, que morreu antes dele se conhecer por gente. Viveu sua infância e adolescência desconhecendo algo além daquela realidade em que vivia, onde a modernidade ainda não havia alcançado, e estava bem assim, por enquanto; pescava com seu pai, jogava bola com seu parco grupo de amigos, e ia para a escola. Sua relação com seu irmão gêmeo era sempre de amor e ódio, brigas e brincadeiras, durante toda a juventude, mas nada abalava a conexão de nascença que os dois tinham.

Até tudo mudar. 

Os professores sempre elogiavam-no pela inteligência e disciplina, por mais que ele não levasse os estudos tão a sério quanto outros aspectos de sua simples vida. Mas isso lhe deixava motivado, especialmente quando ouvia o quão bom ele era em exatas, e que ele podia ser um engenheiro, contador, banqueiro... e isso lhe aumentava o ego de um modo que começava a cogitar fazer faculdade, ao contrário de toda a família. Então, trabalhou por anos fazendo bicos pela cidade para que pudesse juntar uma boa quantia de dinheiro, e, quando terminou o ensino médio aos dezenove anos, saiu de casa sem pretensão a voltar, para estudar na Universidade de Amsterdã. 

Enquanto isso, a bisavó de Harvey ficou doente, e a mãe dele tomou a decisão de morar com ela para que pudesse servir de companhia em seus últimos anos de vida. Ali, conheceu Aart, que abandonou o colégio e passou a trabalhar no mercadinho local  ao lado a casa da bisavó materna de Harvey. Os dois, a princípio, não conversavam muito; ela iria, comprava o que lhe era necessário para a semana, pagava e voltava para a casa. Mas ele não podia deixar de notar a sua beleza de uma menina no auge de seus dezesseis anos; seus olhos esverdeados como duas pedras de esmeralda, seu pequeno nariz levemente queimado pelo sol do verão, seu rosto angular e seus cabelos castanhos e cacheados, claros à luz do sol, que lhe caíam até a cintura de seu corpo curvo. Para um garoto de dezenove anos, que passou toda a vida falando com ninguém além das mesmas pessoas todos os dias, era uma visão única, que ele gostaria de guardar para si. Ele e o pai de Harvey não eram muito sorridentes, mas ela era: sorria mesmo em momentos medíocres, como ao pegar o troco da mão dele e agradecer.

Aart se apaixonou. 

Tentava se aproximar, mas a menina parecia inalcançável, e não só para ele; todos os meninos jovens da cidade julgavam a mesma coisa, por mais que tentassem cobiçá-la, e as meninas a odiavam com todas as suas forças, pois não gostavam de pessoas desconhecidas (muito menos daquelas que causam tamanho impacto em todo lugar que iam). Mas ela pouco se importava. Tudo o que queria era cuidar de sua avó e passar o máximo de tempo possível com ela, já que, no fundo, sabia o que estava por vir.