Fumar era horrível.
A cada sugada no cigarro, eu sentia algo tão incômodo para mim que, mesmo um dia depois, me fazia me sentir estranho. Como se eu estivesse impregnado por um hálito ruim, mesmo que mais ninguém houvesse percebido isso; era algo que me perseguia, e justamente por isso que eu havia passado o dia mascando chicletes.
Sim, eu fazia noção do quanto aquilo havia sido idiota. Prefiro pular esse tópico.
A aula seguinte de biologia fora inteiramente reservada para reunião dos grupos do trabalho. Eu não suportava mais fisiologia humana e, ainda por cima, considerava o sistema respiratório como um dos sistemas mais chatos para estudar, mas eu precisava da nota, pois a professora De Brook não tinha a menor pena de me reprovar.
Sentamos em círculo, e rapidamente um debate a respeito da divisão de tarefas se iniciou — Por parte de Leona, claro.
— Eu acho que três deveriam se encarregar da pesquisa e falas, e dois com a apresentação audiovisual. — Sugeriu Sven, um tanto hesitante. Isso porque, a cada sugestão que fazia, podíamos ouvir um riso fraco e sarcástico por parte de Noora, mas não daquela vez; daquela vez, ela apenas lia um exemplar de Amor Líquido de Bauman, sem prestar atenção alguma na conversa.
— Alguém aqui é bom com apresentação digital? — Perguntou Leona, não recebendo resposta alguma de início; entretanto, quando eu estava prestes a me voluntariar, finalmente ouvimos a voz da loira ali.
— Eu faço. — Disse firmemente, sem desviar o olhar de seu livro, o qual passou uma página logo em seguida.
— Eu posso fazer, também. — Disse Sven, e percebi que ele realmente estava tentando ser gentil.
No entanto, sua fala atraiu finalmente o olhar frio de Noora, que o fuzilou em silêncio, como se o ameaçasse para que mudasse de ideia.
Será que Noora era uma psicopata?
— Então está decidido. — Concluiu Leona. — Noora e Sven na apresentação digital, e eu, Viktor e Harvey na pesquisa.
Harvey me olhou. Havia algo em seu olhar que ainda me incomodava, ou até mesmo irritava, mesmo sem saber o porquê; e era justamente por isso que eu agradecia Leona mentalmente por estar conosco na pesquisa, enquanto me lamentava por não ter conseguido fazer dupla com Sven na apresentação digital.
***
O outono viera para Elburg mais cedo do que o esperado, levando todo e qualquer indício de que o verão havia sequer pisado naquela cidade minúscula. Justamente por isso, as ruas estavam já mais geladas, e as névoas exaltadas pela respiração dos passantes os seguiam. Eu mesmo tinha a minha névoa, sentado na borda da ponte do rio principal de Elburg, a mesma ponte que os adolescentes geralmente iriam para namorar nos fins de semana, mas que nos dias comuns ficava completamente vazio. E, enquanto as pessoas mais pareciam fugir que andar pelas ruas, cá estava eu, eu e minha névoa, com minhas mãos nos bolsos do moletom do My Chemical Romance.
— Hey. — Aquela voz irritantemente doce pairou ao meu lado. Pelo canto do olho, notei que o loiro se sentava ao meu lado.
— Hey. — Okay, ali era uma boa hora de acender um cigarro.
O fitei após alguns segundos de silêncio mútuo. Harvey estava um tanto encolhido ao meu lado, provavelmente porque não vestia nada além de uma calça e uma camiseta de manga comprida, o qual não era suficiente para protegê-lo do frio holandês daquela noite de outono. Suspirei, com uma vontade enorme de novamente socar aquele rosto de expressão sofrida, mas, ao invés disso, despi-me de meu casaco, ficando apenas de moletom e uma blusa por baixo.
— Toma. — Entreguei-lhe a peça de roupa sem olhar em seus olhos. Sabia que ele devia estar bastante confuso pela atitude, e por isso demorou um pouco a agir, o que me deixou ainda mais impaciente. — Só vista essa merda.
Para o meu alívio, não precisei insistir muito. Ou talvez eu o tivesse assustado com a grosseria, pois pegou o casaco logo em seguida, vestindo-o.
— Por que você me chamou aqui, Viktor? — Finalmente perguntou, um tanto hesitante, mas objetivo. Por minha vez, saquei do bolso meu celular; eu não admitiria nem para mim o quanto eu havia demorado em achar aquele print. — O que é isso? — Perguntou, segurando meu celular em suas mãos.
Ah, eu sabia bem o que era aquilo.
Era só o início dos meus pesadelos.
Mesmo que parecesse uma conversa boba entre dois garotos, para o Harvey daquela época era muito mais do que isso.
— Quando você era do primeiro ano e eu era do nono, nós tínhamos uma única aula juntos. — Comecei. — Informática. E você tinha um colega de sala, Lukas, o garoto do print.
O loiro me olhava atentamente enquanto eu lhe contava, como se estivesse a ouvir uma história. Suspirei, sem saber se continuava minha narrativa ou não, pois não fazia ideia de como ele iria reagir.
— Lukas era incubado, obviamente. Isso porque o pai dele era policial, colega de trabalho do seu tio, e claramente não era receptivo às coisas. Foi o primeiro garoto que gostei, e ele parecia gostar de mim também. — Naquele momento, eu não mais o olhava; o que estava falando era pessoal demais. — Nós marcamos de sair. Para um lugar mais reservado, em uma cidade maior, para que pudéssemos ter um encontro decente. Mas marcamos isso pelo Facebook, já que não podíamos ser vistos conversando, e no meio da aula de informática. — Suspirei. — Eu devo ter deixado minha conta logada ou algo do tipo, porque no dia seguinte... esse print era o papel de parede em todos os computadores.
— Viktor... — Começou ele, mas não permiti que falasse nada. Não naquele momento.
Naquele momento, ele iria ouvir.
— Quando eu cheguei, todos cochichavam. Você me olhava com aquela expressão de desafio é aquele sorriso sacana no rosto, como se estivesse vendo como eu iria reagir e, pouco depois, em um de seus milhares de abusos físicos ou psicológicos para comigo, você admitiu que havia sido você. E, depois disso, Lukas teve de mudar de cidade, e eu nunca mais o vi. Só soube que seu pai havia quebrado-lhe o braço, e, por isso, me culpei até hoje.
Eu não olhava para Harvey enquanto falava. Como olharia? Se o olhasse ao falar aquelas coisas, era capaz de querer retribuir na mesma moeda, mesmo sabendo que não podia.
No entanto, quando finalmente o fitei, encontrei seus olhos esverdeados úmidos em lágrimas, iluminados apenas com a luz da lua e alguns postes da cidade. Caí na real naquele instante de que ele não se lembrava de nada, e talvez não estivesse preparado para aquelas informações. E tinha tantas coisas que eu poderia contar-lhe... mas será que estava pronto para ouvir a verdade?
Se ele não fosse mais a pessoa que havia feito tudo aquilo, valeria à pena, então, relembrá-lo de coisas que ele não precisava saber?
E se ele se lembrasse de tudo e se tornasse a mesma pessoa que me machucou profundamente? Depois de eu ter contado tanto à ele?
E, acima de tudo, por que eu estava me importando tanto com o que ele sentia?
— Eu sinto muito... — Sussurrou, a voz vacilando, enquanto apertava a barra do casaco que lhe havia emprestado.
Por quê era tão difícil não me importar quando via seus olhos cheios de lágrimas, expressando a mais profunda e genuína dor que senti em toda a minha vida?
Queria que Harvey tivesse as respostas para aquelas perguntas.
Mas a verdade era que nenhum de nós sabíamos.
Nem o que estávamos fazendo, nem o que iríamos vir a fazer.
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Me Faça Lembrar ⚣
Romansa(Completo) Harvey Wingarden tinha a vida que todos os garotos invejavam; era popular, namorava a menina mais bonita do colégio, e era filho único de uma família rica de Elburg. No entanto, após sair em uma viagem, os Wingarden sofreram um grave acid...