Capítulo 2 - Viktor

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Nojo.

Essa palavra vinha à minha mente com uma frequência gritante. Invadia meus pensamentos sempre que eu via os babacas do terceiro ano se vangloriando de quantas calouras haviam ficado na última festa, onde provavelmente havia drogado-as; nojo quando tinha de sentar atrás de um bando de patricinhas barulhentas durante a aula, que me obrigavam a ouvi-las conversar sobre os mais estúpidos tópicos — e, quando eu falo de tópicos estúpidos, me refiro especialmente àquela mania escrota de falar mal de absolutamente todo mundo. Um nojo que percorria minhas entranhas e me impedia de ser normal e ignorante como todos ao meu redor.

Um ano letivo se passou desde que a escola inteira descobriu sobre a minha sexualidade. Não que, atualmente, eu não deixasse exposto para quem quisesse ver; fazia questão de pintar minhas unhas, fazer os mais caprichados penteados e usar vários bottons LGBT em minha mochila. Naquela época, contudo, as coisas estavam longe de ser assim.

Em um ano, na adolescência, as coisas mudam mais do que se pode imaginar. E, o que hoje era motivo de orgulho, naquele momento de minha vida era o meu pior pesadelo.

As pessoas não fazem questão de esconder o preconceito delas. O que me surpreendia muito, pois eu teria vergonha de ser uma pessoa preconceituosa, mas aos poucos percebi que, enquanto eu sentia nojo de todos os naquele colégio, eles também sentiam nojo de mim e de tudo o que eu representava. E, mesmo que eu já não fosse chamado de "viadinho" por todos que esbarrassem em mim no corredor, sabia que, quando as meninas sentadas à minha frente cochichavam e olhavam para mim, eu estava longe de me tornar normal para elas — ou para qualquer um.

Mas também falemos das exceções.

Leona era minha melhor — e única — amiga desde que havia me visto com um suéter do PewDiePie. E eu era seu melhor — e único — amigo desde que havia percebido que ela via homossexualidade em absolutamente tudo, o que me agradava de um jeito estranho, pois me sentia mais distante daquela bolha de heterossexualidade compulsória que envolvia aquela escola. Desde então, criamos nossa própria bolha colorida; eu, o viadinho do colégio, e ela, a nerd gorda que não dava intimidade a ninguém, e basicamente intimidava todos que tentavam se aproximar com uma seriedade mórbida.

Ofato de Leona ser como aquelas crianças que arrancam a cabeça das Barbies e queimam os Kens entre as pernas, aquilo me fazia amá-la cada dia mais. A ponto de fazer questão de levá-la para casa todos os dias antes de voltar para a minha casa, mesmo que ela morasse do outro lado da cidade e que só tivéssemos bicicletas para nos locomover.

— Eu vi Sven te olhando. — Disse ela, assim que o sinal fechou para os ciclistas e os carros começaram a passar à nossa frente.

— O quê? — Virei meu rosto para ela abruptamente. — Você poderia ter falado algo! Eu poderia tê-lo chamado para sair!

Sven era, além de mim, o único garoto que havia se assumido no colégio. Por vezes, no oitavo e nono ano, ele conversava comigo, mas, aos poucos, fora se afastando por conta das mil tarefas que tinha; além da escola, era parte ativa do grupo de música e passava todo o seu tempo livre estudando ou treinando violino. Além disso, havia adquirido uma óbvia popularidade entre as meninas mais "alternativas", que pareciam gostar da ideia de namorar um garoto pansexual e o rodeavam. Por tais motivos, eu não tinha espaço e nem coragem de chamá-lo para sair, e passava boa parte do tempo esperando por um sinal de sua parte.

— Eu só não te falei na hora para você não ficar convencido. — Respondeu minha amiga, prendendo seus cabelos negros em um rabo de cavalo.

—  Você não me disse nada para que eu continuasse solteiro junto a você, isso sim.

— Eu nasci sozinha e morrerei sozinha, é inevitável. Então eu sei que um dia você vai me deixar por um engraçadinho metido a artista, com essa sua allo-sexualidade fodida. — A morena deu de ombros, fazendo-me rir.

— Eu nunca vou te deixar, Leona.

— Nem pelo Sven?

— Nem pelo Sven.

Leona voltou a olhar para frente, ao que o sinal dos carros passara a ficar amarelo. Eu sabia que ela estava sorrindo por dentro, mas nunca admitiria o quão feliz ficara por aquela minha pequena declaração, portanto, tudo o que falou foi:

— Mentiroso.

Sorri, ao que o sinal abriu para nós e voltamos a pedalar. Sempre tínhamos de passar pela parte mais rica da cidade para chegar em sua casa, pois era a melhor forma de cortar caminho, mas aquela era a região que as pessoas mais nojentas da escola moravam e eu quase sempre atraía olhares de alguma madame caminhando pela calçada com roupas ridículas para malhação ou de algum empregado passeando com o cachorro. Isso era porque, modéstia à parte, eu era fabuloso demais para aquelas pessoas, e por isso não me incomodava muito.

— Eu acho melhor irmos por outro caminho. — Leona freou abruptamente, encarando um ponto fixo à sua frente, o que me fez desviar a atenção dos seres que me olhavam para ela.

— O que foi?

— Só vamos. — A garota começou a dar meia volta, mas ela sabia que eu, ariano do jeito que era, não desistiria tão fácil em saber o motivo pelo qual ela estava agindo de forma tão estranha.

Então, eu resolvi olhar para o que ela anteriormente olhava.

E eu gelei por completo.

Um frio percorreu-me a espinha e meu estômago embrulhou, ameaçando expulsar todo o meu almoço. Então, como uma segunda reação, senti meu sangue ferver quase que ao mesmo tempo que fitei aquela figura saindo de um carro. Joguei minha bicicleta na calçada, pouco me importando com ela ou com qualquer coisa ao meu redor, e indo em direção a ele.

Ele estava distante de mim, e havia mudado muitos aspectos em sua aparência, mas, ainda assim, era óbvio para mim que era ele. Eu nunca esqueceria aquele rosto, com cicatriz ou não.

E eu iria matar aquele filho da puta de uma vez.

— Viktor. — Ouvi a voz de Leona, mas eu não apressava nem interrompia o passo. — Viktor, cara!

Apenas quando senti as duas mãos da morena me segurando firmemente pelos braços, percebi que estava chegando perto demais. E percebi o que estava prestes a fazer.

— Respire fundo. — Ela me disse, e eu obedeci à contragosto. Ainda queria espancá-lo, entretanto, ele estava saindo de uma viatura, estávamos em um espaço público e, se eu lhe desse um soco, era bem capaz de não parar mais até descontar todo o ódio que eu sentia daquele cara. — Eu sei que você odeia ele, mas ele acabou de sair do hospital. Pegue leve.

— Pegar leve?! - Praticamente gritei com Leona, sabendo que estava descontando minha raiva nela, mas que eu precisava descontar de alguma forma. — O cara me humilhou!

Se ele não existisse, eu provavelmente não me sentiria tão vazio, e não conseguia parar de pensar no quanto minha vida seria melhor.

Como que eu poderia pegar leve com uma pessoa que nem pensou duas vezes ao não pegar leve comigo?

Como eu poderia pegar leve com você, Harvey, quando você estragou a minha vida?

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