Capítulo 38 - Viktor

348 38 19
                                    

Talvez não fosse claro para o resto das pessoas naquele cômodo, mas para mim, era tão claro quanto água que o tic-tac do relógio não era a única coisa que fazia Harvey bater seu pé ansiosamente. Eu segurava sua mão; aliás, não soltei sua mão em nenhum instante desde que chegamos ali, e não pretendia soltar até que ele me pedisse. 

A clínica era um lugar particularmente agradável, e que eu conhecia muito bem; isso porque eu já havia estado entre aquelas mesmas paredes brancas repletas de quadros abstratos, sentado naquelas mesmas cadeiras de espera cinzas, e fitando a mesma única janela em frente ao balcão da recepção. Para mim, havia se tornado algo tão natural que eu mal conseguia entender o nervosismo de Harvey, pois não me recordava da primeira vez que fui a um psicólogo.

Eu queria dizer para ele que ficaria tudo bem, mas talvez isso piorasse as coisas. Talvez ele fosse achar que eu estava com pena dele, quando, na verdade, só queria me mostrar compreensivo. Por isso, não falei nada; deixei que minha mão lhe confortasse quando ambos não nos sentíamos confortáveis para fazer mais alguma coisa a respeito.

Quando Lukas perdeu o direito legal de entrar com um processo contra Harvey, e os advogados fizeram o acordo para o tratamento psicológico dos dois garotos, senti que podia finalmente respirar aliviado, pois era, de longe, a melhor opção frente àquela situação. 

Eu, claro, abri mão do processo judicial; talvez eu tivesse seguido em frente com um processo no passado, apenas pela sede egoísta de vingança, mas aquele passado parecia tão distante de mim que eu nem o reconhecia mais como parte da minha vida. De qualquer forma, não era o que Harvey merecia.

O observei por alguns segundos. Seu olho havia desinchado consideravelmente, e os hematomas em seu corpo estavam cada vez menos aparentes, mas não o suficiente para não atrair os olhares furtivos de pessoas curiosas ao nosso redor. Ele ainda usava a bengala às vezes, mas, com o tratamento contínuo de uma fisioterapeuta, sua perna movimentava-se cada vez melhor, e a doutora atestou que, em poucos meses, Harvey poderia voltar a praticar esportes, ainda que não profissionalmente. 

Quando o recepcionista chamou, baixo, mas claro, o sobrenome de Harvey junto com o número do consultório, ele apertou minha mão com mais força, com uma expressão preocupada, e murmurou:

— Viktor, você pode ir comigo?

Ao fitá-lo, notando o quão sério estava, eu franzi o cenho, sem querer recusar seu pedido, mas incerto se algo assim era permitido.

— Hã? Eu não sei, você precisa perguntar se eu posso...

— Eu pergunto. — Ele se levantou decididamente, atraindo mais olhares curiosos. Por fim, suspirei e me levantei com ele, e andamos pelo corredor estreito até chegar no número 6.

A porta já estava aberta, pois um paciente havia acabado de sair dali, e, através dela, podíamos ver a doutora Ashton, que era uma mulher de cabelos tingidos de um louro-ruivo, liso e caindo em seus ombros, e com óculos de gatinho. Ela arrumava sua prancheta quando nós dois entramos.

— Eu... Queria saber se ele pode ficar um pouco para a consulta. — Disse Harvey, timidamente. A mulher ficou um pouco surpresa, pude notar, mas não em um sentido ruim.

— Claro. O que te fizer ficar mais confortável para a nossa consulta. — A mulher, que devia ter uns trinta anos, relaxou em sua cadeira e nos apontou o sofá. — Podem se sentar. — Nós dois a obedecemos e nos sentamos quase ao mesmo tempo. — Então, Harvey Wingarden Jr., certo? — Ela leu em sua prancheta. — Prazer, eu sou a doutora Kayleen Ashton. E você? — Agora, ela olhava para mim. E eu bem sabia o que ela queria dizer com aquilo.

— Viktor Fontaine. — Respondi, apertando a mão do loiro, que, aliás, já estava suada. Ou talvez fosse a minha. — O namorado dele.

Eu não precisava olhar para ele para saber como reagiu depois do que eu falei, pois eu mesmo já sentia meu rosto queimar.

— Entendo. — Ela pareceu reagir com uma indiferença tão grande que me assustou, pois era como se eu tivesse falado algo tão simples quanto, sei lá, "eu gosto de atum". Então, virando-se para Harvey, voltou a falar. — Você se sente mais a vontade quando está com ele?

— U-hum. — Respondeu.

— Quer me falar um pouco sobre como se conheceram?

— Eu preciso? — Ele riu fraco, um tanto triste. 

— Não. você não precisa falar nada, se não quiser.

— Eu prefiro deixar para outro momento. 

— Tudo bem para mim. — Ela se ajeitou na cadeira com uma feição empática em seu rosto. — Então, o que te fez buscar terapia?

— Uma ordem judicial. — Disse ele, e pude notar um pouco de sarcasmo. Talvez aquilo não estivesse indo tão bem quanto eu esperava, mas ela não pareceu se incomodar. 

— E você acha que precisa de terapia? — Respondeu calmamente a doutora. — Porque, se você não quiser mesmo, eu posso te escrever um atestado e você se livra disso. Eu não acredito que a terapia funciona quando as pessoas que estão fazendo não querem que funcione.

— Eu... Preciso. — Ele suspirou. 

— E por que você acha que precisa?

— Porque... — Harvey se ajeitou no sofá, claramente desconfortável com tudo aquilo. —Eu bebo muito, não tenho motivação para nada, nem planos para o futuro... eu penso em suicídio mais do que eu gostaria, e talvez eu seja viciado em sexo. 

Olhei para ele, quase incrédulo com o que conseguiu dizer em tão pouco tempo. Nem eu sabia de tudo o que se passava na cabeça dele.

— Tudo bem. — Disse ela, que não pareceu se surpreender. — Eu quero que saiba que acredito que todos nós precisamos de assistência psicológica, e que existem muitas pessoas enfrentando o mesmo que você enfrenta. Você não está sozinho, Harvey, e eu pretendo te ajudar aqui. Tudo bem?

— Sim. Tudo bem. — Disse ele, ficando um pouco mais calmo. — Mas, doutora, você realmente acha que eu consigo superar tudo isso?

— Eu tenho certeza que sim. Você ainda é jovem, e tem bastante apoio ao seu lado. — Disse ela, calmamente, enquanto apontava para mim com o seu olhar. — Se sente mais confortável agora?

— Sim. — Respondeu rapidamente. 

— Eu posso ir, então? — Senti aquilo como sendo minha deixa, e levantei-me ao vê-lo assentir hesitantemente. Era melhor que ele estivesse sozinho; havia muitas coisas que ele precisava tratar sem mim. 

Quando fechei a porta do consultório atrás de mim, não pude deixar de soltar um suspiro de alívio. Não por ter sido algo ruim, pelo contrário.

Eu me sentia tão estranhamente orgulhoso dele.

E agora, eu tinha a certeza de que as coisas ficariam bem.

Me Faça Lembrar ⚣Onde histórias criam vida. Descubra agora