Prólogo - Tons de branco

1.4K 105 52
                                    

Se você pudesse recomeçar sua vida do zero, você o faria? Mesmo que isso significasse perder tudo o que você já tinha?

Eu nunca fui um cara de acreditar em carma. Para mim, tal coisa como "lei do retorno" era unicamente destinado aos hippies que possuíam o cérebro fritado pelo uso excessivo de cannabis; mas como eu poderia explicar, então, tudo o que aconteceu, se não como uma vingança do universo para comigo? Como um lembrete de que, se eu não houvesse feito o que eu fiz, eu não estaria passando por nada daquilo?

Elburg amanheceu coberta por um lençol espesso de neve. Por ser um município pequeno, eu tinha certeza de que a neve não era limitada apenas à cidade, mas, ainda assim, meu pai me disse que não havia problema algum em viajar naquele clima, e que tínhamos de aproveitar as férias de inverno antes que acabassem. Um detalhe é que a sua definição de "aproveitar" era completamente oposta à minha, obviamente.

Eu já detestava acordar cedo no frio. Por isso, quando minha mãe me chamou, batendo com os nós dos dedos exatamente duas vezes na porta, resmunguei de modo audível o suficiente para que ela escutasse o quão descontente eu estava em ter de viajar com eles. Eu iria perder o baile de inverno por causa daquela decisão estúpida, sendo que havia prometido a Felicity que estaria lá com ela, mas o que eu poderia fazer? O jeito era esperar o ano seguinte, em que eu teria dezoito anos e, enfim, pudesse ir embora de casa e fazer o que eu bem entendesse com as minhas férias. O que tinha de tão legal em Giethoorn, afinal, que não fosse sua imitação barata de Veneza?

Tentei demorar o máximo possível a me levantar e me arrumar, até que meu pai gritasse da cozinha para que eu agilizasse, ou não conseguiria comer o café da manhã. Bufando, resolvi à contragosto vestir qualquer roupa que eu tinha e descer.

— Amor, eu acho que o pneu está um pouco careca. — Ouvi minha mãe dizer enquanto eu descia as escadas sem pressa alguma. — Quando eu usei o carro ontem, estava derrapando um pouco. E com essa neve...

— Eu tenho certeza de que tem um posto chegando em Overijssel, então podemos resolver isso por lá. Ir ao posto agora só demoraria mais, e já estamos atrasados para encontrar os Van Den Berg.

Eles então notaram minha presença, que queria tudo menos ser notado naquele momento, enquanto eu colocava cereal puro em uma tigela de plástico.

— Harvey, coloque leite também. — Disse minha mãe, franzindo seus lábios pintados de um tom vermelho vinho.

— Eu não gosto de leite.

— Quando que você parou de gostar de leite? Você adorava até alguns dias atrás.

— Talvez você não tenha percebido porque você está muito ocupada com as suas amigas para saber do que eu gosto ou não. — Sabia que minha resposta um tanto cínica iria atingir sua ferida, mas eu não estava no ânimo para me importar com aquilo.

— Eu não vou discutir com você agora. Só coloque leite, você tem que se alimentar bem antes de viajar.

— Mas eu não gosto! — Praticamente gritei, me sentindo o ser mais injustiçado do mundo.

— Mas eu estou mandando! — Ela respondeu à altura, me fazendo bufar de raiva e colocar a merda do leite.

Comi em silêncio, sem nem prestar atenção nas coisas fúteis que meus pais conversavam sobre. Quando não era sobre trabalho, suas conversas geralmente se pautavam nas fofocas da cidade, assunto que eu até gostaria de participar, se não fossem coisas tão banais quanto o aumento de peso de Jenna Holland ou o suposto caso de Ethan Müller. Então, apenas comi algumas colheradas de leite com cereal, antes de dar tudo para Chloe, minha cadela, comer, sem que meus pais sequer notassem o que eu estava fazendo.

Afinal, eu odiava leite.

Tudo já estava pronto quando meu pai me chamou para ajudar a colocar as malas no porta-malas. Eu já imaginava o tanto de coisas que teria de carregar; minha mãe sempre levava muita coisa, mesmo que não fosse necessário, o que, mais uma vez no mesmo dia, me estressou, pois tive que carregar suas duas malas de dez quilos sozinho enquanto a madame retocava sua maquiagem no retrovisor do carro.

Quando enfim pude entrar no veículo, suspirei de alívio, sentindo meu corpo transpirar em pleno inverno com o esforço. Retirei o cachecol, gorro e casaco, sabendo que o aquecedor do carro iria me matar, enquanto meu pai dirigia para fora da garagem aberta de casa.

Um frio na espinha me atingiu em súbito, algo que procurei ignorar; hoje em dia, talvez eu enxergasse aquilo como um mau pressentimento, mas, naquela época, eu era cético demais para pensar em tal coisa.

Enquanto saíamos da cidade, resolvi colocar os fones de ouvido para ouvir qualquer merda que me ensurdasse o suficiente do mundo exterior a ponto de eu não escutar nem os resquícios da voz do casal que estava sentado nos bancos da frente. Pela janela, não conseguia enxergar nada além de neve, e alguns relances de pequenas casas se afastando cada vez mais de nós, até não existir nada mais que branco.

Tudo ao meu redor estava branco.

Branco quando ouvi, superando o som da música eletrônica que começara a tocar aleatoriamente, o ruído do carro tentando frear, mas escorregando com o gelo que cobria a estrada. Branco quando minha mãe esgueirou-se a minha frente, como se estivesse tentando me proteger de algo, ao que, segundos depois, o carro foi atingido pelo que parecia ser um outro carro na contramão.

Branco e vermelho quando eu, que não coloquei o cinto de segurança por pura incompetência minha, fui arremessado com tudo para frente, sentindo a dor alucinante dos estilhaços de vidro atingindo meu rosto um pouco antes de eu ficar completamente inconsciente, e, ainda assim, amortecido pelo corpo da mulher que, em seu último sopro de vida, tentou me proteger.

A partir daquele momento, então, tudo ficou preto.

Me Faça Lembrar ⚣Onde histórias criam vida. Descubra agora