Capítulo 1 - Harvey

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Imagens.

Uma série de imagens captadas rapidamente em minha mente, entrelaçando-se e passando por mim rapidamente, sem que eu pudesse vê-las direito para me lembrar de alguma coisa.

Então, eu perdi o rumo.

Entreabri minhas pálpebras, que tanto ansiavam para serem abertas, mas um feixe de luz me cegou. Me acostumando aos poucos com a claridade, minha visão lutava para se manter focada.

Mas eu só enxergava branco.

Demorei alguns minutos para perceber que era um teto. Se tinha um teto, eu estaria em algum lugar fechado, foi o que pensei ao tentar raciocinar direito. Estava confuso e fraco; sequer sei como juntei forças o suficiente para me mover.

Passei em torno de trinta segundos para conseguir sentar na cama. Meus olhos observavam tudo, de um lado para o outro, procurando algum objeto que eu pudesse reconhecer como sendo familiar para mim.

Havia uma televisão à minha frente, isso eu saberia dizer. Algumas máquinas estranhas ao meu lado, as quais eu era ligado por fios, mas o que mais me intrigou foi o vidro fumê da pequena janela.

Quem era aquela pessoa esquisita?

Em meu reflexo, volumosos cachos dourados caíam-me aos ombros esqueléticos, cobertos por uma camisola branca quase transparente. Meu rosto mais parecia minha caveira, mas o que mais me chamava atenção eram as cicatrizes.

Uma cicatriz cortava minha sobrancelha; outra, minha boca e, por fim, a última atravessava horizontalmente meu nariz.

Lembro-me que não tive nenhuma reação além do mais genuíno pavor, acompanhado da confusão. Eram os únicos sentimentos que eu tinha a oferecer naquele momento, até para mim mesmo.

Coloquei os pés para fora da cama e, em uma demora impressionante, levantei-me; a parte mais fácil foi arrancar todos os tubos que penetravam minhas mãos e pulsos. Um ruído irritante de uma das máquinas me perturbava profundamente, ao que me encaminhava aos poucos para a porta do cômodo branco, as pernas prestes a ceder; por minha sorte ou azar, duas pessoas vestidas de azul bebê entraram no quarto, segurando-me rapidamente.

***

— Qual o laudo, doutora? — Avistei um homem levantando-se de uma das cadeiras do corredor do hospital, assim que saí do consultório. Era loiro, um pouco grisalho, e a face de bochechas um tanto rechonchudas, desproporcionais para seu nariz arrebitado e seus pequenos olhos castanhos. Vestia-se como um policial, mas com uma jaqueta verde musgo por cima, o que não me impedia, porém, de ver a arma guardada em um compartimento preso à sua perna.

A médica havia feito diversos testes comigo antes de me dar alta. A maior parte era reconhecer as pessoas que ela me mostrava através de fotos, teste que falhei miseravelmente, pois só reconheci minha professora De Brook e Jenna Holland, conhecida como a louca dos gatos. O resto me era estranhamente familiar, mas não conseguia me lembrar de nomes ou sequer de onde os conhecia, de modo que a doutora resolveu mudar o teste e me mostrar um texto. Após lê-lo e escrever meu nome — que, aliás, tive de perguntar a ela —, ela enfim me liberou daqueles exames cansativos.

— Harvey terá de ser observado de perto. — A loira de jaleco respondeu. — Ele possui noções básicas de muitas coisas, então provavelmente sua memória voltará aos poucos.

— E a escola? — Voltou a perguntar o homem.

— Bem, cabe a ele decidir, na verdade. Harvey não possui mais nenhuma fratura e logo conseguirá andar direito, então ele é capaz de ir à escola novamente, mas também devemos deixar que ele se prepare psicologicamente. O ambiente escolar nem sempre é saudável.

— E o que eu devo fazer? Eu não tenho nem dinheiro para sustentar uma criança.

— Nesse momento? Entrar em contato com o banco, apresentar o seguro de vida à seguradora e abrir uma conta bancária para o garoto. — A mulher parecia tão prática que até me intimidava um pouco. — Ele é maior de idade, então não precisará ser sustentado. O que ele precisa é de apoio emocional da parte dos familiares.

***

Recebi minha alta mais rápido que pensei — havia demorado apenas alguns dias, pois tive de fazer uma série de exames físicos e psicológicos —, e logo pude sair com o policial loiro e seguir até sua viatura, deixando o hospital vidrado rapidamente.

Não sei dizer por quantas cidades passamos ou por quanto tempo ficamos em silêncio, enfurnados em uma viatura, quando o policial resolveu tomar a iniciativa de falar comigo.

— Você não se lembra de mim, certo?

O olhei por poucos segundos, piscando confusamente. Seu rosto parecia um pouco como o meu, com exceção do formato e da cor dos olhos, e seus cabelos eram da mesma cor que os meus; não tinha, porém, qualquer indício afetivo que dissesse que ele era meu pai.

— Não. — Respondi timidamente. Deveria ser no mínimo desconfortável alguém esquecer de quem você é daquela forma, então eu me compadecia um pouco com ele.

— Eu sou irmão do seu pai. — O loiro olhou para mim de relance. — Você pode me chamar de Aart.

— Aart. — Proferi as palavras baixinho, sabendo que soavam familiar, mas não vinha nada. — E... Onde está meu pai, então? — Era uma simples pergunta, mas que ainda assim fez Aart estremecer, e, no fundo, eu sabia o que estava por vir.

— Seu pai, Harvey... Ele não resistiu. — O homem falou com tanta seriedade que, mesmo sem nem saber quem meu pai era, senti uma súbita vontade de chorar, mas engoli esse desejo rapidamente. Pois eu tinha o estranho pressentimento de que ainda haveria muita coisa para gastar minhas lágrimas. — Você, sua mãe e seu pai sofreram um acidente. Ela também... — Aart não chegou a completar, pois ambos sabíamos o que ele queria dizer, mesmo que minha cabeça ainda estivesse confusa. — Enfim, em breve as suas lembranças vão voltar e você voltará a ser quem era, então não se preocupe com isso agora...

— E quem eu era? — Murmurei, atraindo novamente seu olhar. Agora, ele parecia um tanto constrangido.

— Na verdade, não nos conhecíamos muito bem, mas você me parecia um cara legal.

Assenti e voltei a observar o caminho, mas, ainda assim, ainda havia milhares de perguntas que eu queria fazer, não conformado com aquela resposta.

Avistei varias casinhas ao longe, que mais pareciam de brinquedo, após em torno de vinte minutos; ao que nos aproximávamos, a visão daquela "cidade de brinquedo" se ampliava, ao menos até estacionarmos em frente a uma casa de paredes de cor casca de ovo.

— Bom, irei passar aí amanhã, então me diga o que precisa que eu compre. — Disse Aart, como um pedido para que eu saísse do carro, que obedeci prontamente. — Irei trazer Chloe também. Ela já me causou muitos problemas.

— Chloe? — Antes fechar a porta da viatura, Peguei as chaves que Aart jogou agilmente para mim.

— Aquela cadela escandalosa. — Ele voltou a ligar o carro. — Te vejo amanhã. Aproveite o seu lar.

Assim, no momento em que ele foi embora, percebi então que ninguém me mostraria onde era meu quarto, ou onde guardar os pratos, ou o que eu faria de agora em diante. Nada. Eu estava perdido.

Sem saber onde estava, ou quem eu era.

Lar?

Como ali seria meu lar, se eu estava completamente sozinho?

Me Faça Lembrar ⚣Onde histórias criam vida. Descubra agora