Capítulo 30 - Viktor

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— Ei. — O espaço ao lado de Leona no refeitório foi ocupado por mim sem aviso prévio, mesmo que eu soubesse que ela estava com uma raiva imensa de mim.

— A princesa decidiu aparecer? — A morena tinha um olhar vago e seu rosto se apoiava em uma mão sua. — Você deveria ter vindo de cachecol. Seu cabelo não esconde nada.

— Eu vim de cachecol, mas seria mais esquisito ainda se eu continuasse de cachecol mesmo em um espaço com aquecimento de 20 graus. — Suspirei. Eu sabia que as marcas estavam feias, e queria matar Harvey por isso.

No dia seguinte ao surto de sadomasoquismo dele, sequer olhei para sua cara. Eu não queria que ele se sentisse livre para fazer algo assim comigo novamente, como se eu fosse um putinho dele ou algo do tipo, então lhe dei uma avalanche de frieza até que fosse embora, por mais que sua expressão sempre melosa e angelical conseguisse derreter um pouco do gelo que havia em mim. Mas eu não queria que ele tivesse aquele poder sob mim, justamente porque ele o tinha sob o mundo inteiro.

Além disso, minha bunda doía para caralho.

E falando no diabo, assim que o avistei se aproximar com a bandeja de almoço em mãos e um sorriso no rosto, levantei-me da mesa de imediato, decidido a não dar-lhe abertura alguma. Meu prato de comida ainda estava cheio, mas ainda assim era melhor evitar aquele contato que saciar minha gula; por isso, murmurei um "desculpa por tudo, vou ao banheiro" para uma Leona completamente indiferente, e saí quase correndo de lá.

Eu não sabia bem o que eu estava fazendo, e provavelmente parecia um ridículo. Mas concordemos que eu tinha os meus motivos para fugir dele.

E concordemos também que eu estava apenas adiando o inevitável.

A maior parte do dia foi baseada em Harvey tentando falar comigo, e eu fugindo descaradamente dele, até mesmo ignorando suas mensagens. (In)felizmente para mim, a única aula que tínhamos juntos naquele dia era educação física, que seria mais fácil para mim de desvencilhar-me de qualquer tentativa de contato. Ou assim eu pensava.

O vestiário era, sinceramente, o pior lugar do colégio. Um amontoado de homens se trocando que sabiam muito bem que eu era gay, ou seja, era um campo minado em que eu nunca poderia olhar para os corpos que me cercavam; isso se eu não quisesse levar, sei lá, um soco. Aquela era uma realidade de fato triste e eu poderia até dissertar sobre, mas, bem, uma hora chega a ser cansativo e o costume se instaura após pequenos atos de preconceitos. Enfim.

Por mais que eu não tivesse o mínimo interesse de ver o corpo seminu de Harvey naquele momento (ouviu, né, fujoshis?), estranhei por não vê-lo ali, pois ele nunca matava uma aula de educação física (ao contrário de mim, é claro). Mas minha confusão evaporou rapidamente assim que senti um puxão em minha roupa e fui levado à contragosto para entre os armários e a parede, em um ponto cego — e bem estreito, por sinal. Nem precisei olhar para saber quem havia me puxado até ali.

— Ei. — Ele tinha uma gota, que podia ser de água ou suor, escorrendo em sua testa úmida, e aproximando-se de sua cicatriz na sobrancelha esquerda. Sua mão foi para o armário metálico acima de meu ombro, na intenção discreta de prender-me ali, ao que eu o olhava de braços cruzados. Chegava até a ser engraçado vê-lo nas pontas de seus pés daquela forma, tentando parecer um galã, quando eu era inegavelmente mais alto.

— O que você quer?

Seus olhos checaram meus lábios discretamente, mas não tão discreto a ponto de eu não perceber. Porra, estávamos próximos demais.

— Por que está me evitando?

— Por que você acha? — Respondi sua pergunta cinicamente, mas evitando olhar o abdomen desnudo que ele fazia questão de mostrar.

— Você... não gostou? — Sua feição manhosa me fez grunhir e virar o rosto para o lado, resistindo à inevitável aproximação.

— Não é isso.

— Então você gostou? — Pude sentir em sua voz que um sorriso havia brotado em seu rosto, e isso me fez encará-lo novamente, confirmando minhas suspeitas.

Pelo pouco barulho ao redor do grande vestiário, sabia que muitos garotos já haviam partido para a aula, e que faltava muito pouco até ficarmos completamente sozinhos ali. Ou seja, se eu não quisesse acabar sendo bolinado no vestiário, tinha que ser rápido e me livrar daquele... incubus.

— É exatamente isso que eu não suporto! — Afastei seu braço para livrar-me daquela prisão invisível. — Você todo engraçadinho, agindo como se o que está acontecendo fosse a coisa mais simples do mundo. Não é, o.k.? 

— Eu sei que não é, Viktor. — Sua mão foi para uma mecha de meu cabelo, a qual ele enrolou em seu dedo com um suspiro. — Eu sei exatamente como as coisas são. E entendo que você hesite, confie em mim quando digo isso. Mas eu estou tentando ao menos tornar tudo menos tortuoso, tanto para mim quanto para você. — A expressão de Harvey era séria e decidida, mas carinhosa. — E me desculpe, eu nunca quis que você pensasse que eu faço pouco caso do que nós estamos enfrentando agora. Mas, por mais que doa, entendo seus motivos em se afastar. — O loiro terminou seu monólogo com um beijo em minha bochecha, não um demorado ou estalado, mas discreto e leve, como se quisesse ao menos deixar um pouco de si em mim.

Aquele era o máximo que nós dois conseguiríamos um do outro. Falaríamos do problema sem mencioná-lo de fato: acho inclusive que ambos tínhamos medo do que aconteceria se realmente conversássemos sobre tudo o que aconteceu. Por isso, ele não só me deixou fugir da conversa como foi o primeiro a sair de nosso pequeno espaço no canto. 

O mais saudável seria tentar superar tudo aquilo e se entregar em uma relação, mas eu honestamente não sabia se estávamos prontos para fazer isso.

Quando entrei em contato com o mundo da astrologia pela primeira vez, fui extremamente cético. Não havia motivos para acreditar em algo sem a devida comprovação científica, então privei-me de conhecer meu mapa por puro preconceito. Mas Leona era estranhamente  fã daquilo, e, sem que eu percebesse, me arrastou para o buraco com ela desde o dia em que fez o meu mapa astral. E lá estava eu, encarando os meus piores defeitos, mas com uma tamanha teimosia que não me permitia aceitar. Sim, eu era teimoso e gostava de tudo sob o meu controle. E talvez fosse justamente por isso que eu tinha tanta resistência contra Harvey.

Estar com Harvey era como mergulhar de cabeça em águas que eu não sabia ao certo se eram boas ou não para o nado, sequer se eram calmas ou tempestuosas. Era cair no abismo do desconhecido, e eu não tinha certeza se gostava disso. Quando eu era afim de Sven, minha vida era calma e cotidiana, e eu tinha tudo sob controle. Mas Harvey? Estar com ele era uma bagunça, uma que eu não conseguia arrumar.

Ele me irritava, e então me compensava com um prazer intenso e tortuoso. Na frente de todos, ele era meigo e sociável, mas, quando estávamos a sós, ele se transformava por completo. E o que eu poderia fazer em relação a isso? Cheguei até mesmo a recorrer à compatibilidade dos nossos signos, que era quase nula, por sinal; um capricorniano e um geminiano conseguiriam sequer sobreviver um com o outro? Bem, não que eu encanasse muito com astrologia, mas havia certo sentido.

Na verdade, tudo ao nosso redor me dizia que não iria dar certo.

E talvez, se eu desse ouvidos a isso, eu poderia até poupar o que viria a seguir.



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