Capítulo 19 - Harvey

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Merda.

Se alguém me perguntasse como eu me sentia, essa era a única palavra que viria em minha mente; merda. Em todos os sentidos da palavra.

Primeiro, eu não conseguia levantar da cama. Era como se uma força me puxasse para baixo com tanta intensidade que tudo o que eu podia fazer era deitar, mesmo sem estar com uma gota de sono. Em primeira instância, pensei que era preguiça; mas como seria preguiça, se ela era relativamente fácil de espantar quando se desejasse? E eu queria me levantar, mas não conseguia mover um músculo. E o pior daquilo tudo não era nem o meu corpo, que claramente não seguia minhas vontades, mas minha cabeça.

Eu não queria voltar para a escola. E nem precisava, na verdade, pois eu era maior de idade e poderia decidir simplesmente sair. O que eu estava fazendo ali, afinal, se minha vida havia simplesmente acabado? O que eu sequer estava fazendo vivo? Talvez, se eu houvesse morrido ao invés dos meus pais, tudo estivesse melhor. Mas eu tinha quase certeza de que aquilo era uma espécie de punição do universo para comigo, que, condenado a passar o resto da vida sozinho, tinha de arcar com consequências de coisas horríveis que eu sequer me lembrava que havia feito. Ou talvez aquilo não era merda nenhuma e eu que estava sendo apenas um egocêntrico de merda em achar um significado para cada acontecimento ruim em minha vida.

Merda, eu me odiava.

Não era para ser assim.

Eu não parava de refletir sobre o que aquilo tudo era. Uma brincadeira do destino era a suposição mais óbvia; afinal, quais eram as probabilidades de eu ter perdido meus pais e minha memória após anos sendo um babaca arrogante, e então me apaixonar pelo cara que eu quase matei?

Eu quase o matei.

Ainda assim, por mais que eu tenha me lembrado de algumas pessoas, eu não conseguia me lembrar de nada relacionado a ele. A pessoa que eu mais queria me lembrar.

Talvez minha mente estivesse querendo me torturar, ou talvez até me poupar de me sentir pior do que eu já estava. Eu havia lido um pouco sobre amnésia pós-traumática..

Eu sei que deveria ver um terapeuta.

Mas eu não conseguia sair daquela cama.

Quando finalmente consegui dar um passo para fora do colchão, percebi o quão apertado eu estava por ter segurado minha bexiga por tantas horas. Era um aperto que até doía, ao que fui correndo e tropeçando para o banheiro. No entanto, voltei para a minha cama quase tão rapidamente quanto saí, tornando ao meu estado de completa inércia. Chegava a ser ridículo. Se eu não alimentasse a mim, ou a Chloe, nós morreríamos de fome; ainda assim, tudo me impedia de me mexer propriamente.

Senti meu celular vibrar pela terceira vez, e foi só ali que notei que não sabia onde ele estava. Tateei o colchão por alguns segundos até achar o aparelho, o qual irritou meus olhos imediatamente com sua luz, já que todas as cortinas estavam fechadas. Eu sabia que só havia possibilidade de ser Noora, Sven ou Viktor, já que eles eram os únicos que tinham o meu número, mas a última opção era bem improvável no momento.

Confirmando minhas suspeitas, desbloqueei o celular e na deparei com mensagens de Sven e Noora.

De: Sven
Cadê você? Você tá bem?

De: Sven
Espero que venha para a apresentação de biologia...

De: Noora
Eu ia falar com você hoje, mas você não veio pra aula. Enfim, me ligue, porque eu acho que arranjei um emprego pra você.

Ah, era verdade. Ainda tinha aquela parte da minha vida. Bem, eu sabia que o dinheiro dos meus pais não duraria para sempre, e que eu ia me ferrar caso eu dependesse dele; mas, ao invés de ligar para ela, eu apenas joguei o celular para o outro lado da cama e voltei à minha inércia, sem nem ao menos entender por que eu não tomava uma atitude na minha vida.

Então, eu me lembrei do conselho que Felicity havia me dado. Havia algo de estranho nela, claramente algo que ela não queria me contar, mas, naquele momento, sua sugestão de procurar pela biografia de meu avô havia me sido extremamente útil, pois minha procura por memórias da minha família poderia me afastar daqueles pensamentos extremamente negativos que eu estava tendo. Pois, por mais que eu não estivesse mais vendo razão em minha vida, também não tinha a coragem necessária para tirá-la.

Afinal, tirar sua própria vida era um ato de fraqueza ou coragem?

Bem, não importava naquele momento.

Levantei-me como se estivesse levantando da maca após o coma mais uma vez. Lentamente, hesitante, mas foi até um pouco mais fácil que tomar a iniciativa de levantar propriamente. Eu havia visto uma porção de livros no quarto dos meus pais, o qual não tive coragem de entrar desde os primeiros dias na casa, mas que, agora, não via muito problema em adentrá-lo, se fosse para procurar por aquele livro. Eu suspeitava até que estava sabendo lidar com a questão dos meus pais até um pouco menos pior que em relação a Viktor, e suspeitava que era porque eu ao menos não me sentia tão culpado, por mais errado que isso fosse.

Mas eu era todo errado, mesmo.

Procurei o livro por um bom tempo, mas não o encontrei em lugar algum. Nada que sequer remetesse ao nome Wingarden. Nem nas prateleiras do cômodo, nem largado nas mesas da sala; logo, imaginei o óbvio. Meu pai provavelmente não tinha uma boa relação com o meu avô, ou não dava muito valor para suas conquistas. Eu só conseguia lembrar das coisas boas de minha família, então era o mais plausível a se constatar.

Mesmo assim, sentei-me no sofá, sentindo-me um tanto frustrado com a situação. Pois o fato de eu não ter encontrado aquele livro, mesmo após procurar em todos os cantos, significava que eu teria de encarar aqueles pensamentos e sentimentos de uma forma ou de outra, pois meus demônios não me deixariam tão cedo. E o carma era uma vadia, então é claro que eu não encontraria o livro.

No entanto, para a minha surpresa, a campainha da casa tocou alguns segundos após eu me sentar naquele sofá. Eu não me sentia especial a ponto de entender aquilo como um sinal, mas decerto foi algo bom, mesmo que, ao atender à porta, eu tenha me deparado com Felicity, vestindo um casaco lilás cuja gola cobria quase a metade de seu rosto e segurando um saco plástico que sustentava uma garrafa de vidro.

— Hey. — Falei, sorrindo de canto, um tanto incerto de suas intenções a estar ali. O vento congelante advindo da rua pareceu cortar meu rosto, mesmo que eu não houvesse deixado isso transparecer.

— Hey. — Ela me respondeu, sua voz abafada pelo tecido que cobria seus lábios. — Você não foi para o colégio, então eu fiquei um pouco preocupada... enfim — e ergueu o saco plástico que carregava. —, Eu trouxe cerveja.

Permiti que meu sorriso se expandisse mais um pouco, pois, mesmo que tivesse minhas suspeitas em relação às suas intenções, não podia negar que estava desesperado por uma mínima distração. E ela não parecia se importar com minha expressão acabada ou com meus pijamas finos, que me obrigavam a ter de fechar logo aquela porta, ou provavelmente morreria de frio. Por fim, sem demorar muito, respondi o que ela queria queria ouvir:

— Você não quer entrar?

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