Capítulo 9 - Harvey

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Eu gosto da interpretação do inferno como sendo um looping infinito do seu inferno particular. Em que as pessoas viveriam situações torturantes de novo, e de novo, por toda a eternidade.

O meu inferno particular era aquela memória. Uma memória que, mesmo que houvesse demorado a surgir, agora encrostava em meus pensamentos, de modo que se tornava inevitável não revivê-la a todo momento.

Eu não desejaria que ninguém visse o que eu vi.

Não desejaria que ninguém visse os cadáveres dos próprios pais.

Não me lembro de como fomos até a minha casa. Mas me lembro de ser jogado desajeitadamente em minha cama, me sentindo um tanto zonzo; talvez fosse a bebida, ou porque estava começando a me lembrar, mas pouco importava.

— Viktor? — Perguntei, pois, àquela altura, já não tinha certeza se ele estava do meu lado.

— Sim? — Sua voz rouca e grossa preencheu aquele quarto escuro. Eu estava sonolento, mas ainda assim consegui enxergar um resquício de seus cabelos rubros, e sua silhueta sentada ao pé da cama.

— Eu estou com frio. — Murmurei, encolhendo-me, mas sem forças de me levantar para pegar um edredom.

As costas geladas de sua mão tocaram-me a testa e, então, pescoço, causando-me um choque térmico que me fez estremecer. Ficou alguns segundos analisando minha temperatura, até que se afastou calmamente.

— Você está com febre. — Comentou baixinho. — Tem algum remédio aqui?

— Eu não sei... — Minhas pálpebras ameaçavam fechar-se, mas eu estava tentando.

— Já volto, então.

Não contei o tempo que Viktor levou para voltar. Aliás, provavelmente havia tirado um cochilo, pois, quando senti sua mão em meu ombro para acordar-me, levei um fraco susto, e encontrei-me todo encolhido em posição fetal no colchão gelado.

— Sente. — Mesmo que de forma impositiva, havia soado como o mais próximo que Viktor conseguia de pedir algo a alguém educadamente, logo, não questionei.

Ele me entregou um comprimido oval e uma xícara de chá; engoli o comprimido depressa, mas enrolei de beber o chá, até que o deixei pela metade na mesa de cabeceira. O ruivo não reclamou, pois sabia o quanto eu queria — e precisava — dormir.

Assim que me deitei novamente, agora com um edredom grosso que Viktor havia trazido para mim, fui transportado para um sono conturbado. Sonhava com a mesma coisa, o mesmo acidente, de novo e de novo, até que o sino da cidade me acordou no dia seguinte, finalmente libertando-me daquele inferno.

Mas então, eu acordei, e me deparei com a realidade. E percebi que a realidade também não era tão diferente de meus sonhos.

Minha bengala estava do meu lado. Eu andava tentando caminhar sem precisar utilizá-la, e estava indo particularmente bem naquilo, mas me sentia ainda muito fraco naquele dia em específico; por conta disso, apoiei-me nela para descer as escadas.

Conforme descia, tomando um cuidado extremo para não acabar caindo, passei a sentir um cheiro particular. Naqueles últimos dias, eu havia até tentado aprender a cozinhar, mas minhas comidas ficavam ou pouco ou muito salgadas, de modo que geralmente comprava congelados ou comia fora.

Por isso, quando senti aquele cheiro, senti-me como uma criança, pois tal situação me dava uma certa sensação de nostalgia. Como se eu tivesse vivido aquilo antes — e, de fato, não duvidava disso —, como um dejá-vu.

Me deparei com uma figura alta e ruiva, de cabelos presos em um coque, assim que adentrei à cozinha. E o cheiro ficava mais forte, junto às lembranças, que, por um par de milissegundos, me fez imaginar minha mãe ali, no lugar de Viktor, fazendo waffles e cantarolando baixinho. Em uma realidade paralela àquela em que eu realmente estava, luzes solares invadiam toda a casa em raios leves, que clareavam os cabelos castanhos de minha mãe para que se aproximassem de um louro queimado.

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