O aniversário

842 107 21
                                    

Kara estava aflita. Winn e Mike haviam combinado de chegar mais cedo ao prédio e ficar na casa dela até a hora da festa de Andrea, que comemorava seu aniversário naquele dia.

– Fica quieta, Ka, assim eu não consigo te maquiar! – reclamou Mike.

– Tá, desculpa.

– Sorte sua que a minha irmã vivia pedindo para eu fazer isso pra ela – disse o estudante.

– Ah, e bem que você gostava, né?

Ele ficou vermelho, enquanto Winn e Kara riam.

– Tenta se acalmar, Ka, não estamos atrasados – observou Winn.

– Eu sei, mas...

– A gente entende – disse Mike, fechando o estojo. – Mas relaxa, você está mais linda do que nunca.

– Concordo – disse Winn, sorridente. – Aposto que a Andrea vai adorar essa bonequinha de presente de aniversário.

– Hei! – protestou Kara.

– Puxa, se eu tivesse nascido mulher, queria ter vindo ao mundo com esse seu cabelo... – suspirou Winslow.

– Meu Deus do Céu, quanta bichisse, vocês dois estão me deixando tonta!

Os dois riram do nervosismo dela. Kara tinha mentido para os pais e conseguido voltar de sua cidade natal antes do final das férias, para poder ir ao aniversário de Andrea.

No começo da noite ela tinha até tentado negar, mas com tantas insinuações tanto de Winn quanto de Mike, acabara baixando a guarda e contando que tinha terminado com Lucy definitivamente.

E que não estava sofrendo tanto assim porque andava pensando seriamente em ficar com Andrea.

Imediatamente os dois se prontificaram em ajudá-la, o que na verdade, já estava entre os seus planos, quando convenceram a garota de que deveriam se reunir os três, antes, na casa dela.

– Ai que emoção! – disse Winn. – Desde o dia que eu dei de cara com você, ali na porta, e com a And babando... Que eu espero por esse dia!

– Como assim?

– Ah, Kara, não se faz de desentendida – Mike piscou o olho. – Grande balde de água fria você jogou na cabeça dela quando contou que tinha namorada.

– Sério?

– Deixa, Mike. Deixa ela se fazer de sonsa. É só para ouvir com todas as letras, mas isso você vai ter de esperar da And e não da gente – sorriu, com os olhos brilhando.

Ficaram rindo, enquanto Kara vasculhava seus armários e a mala que ainda estava feita, uma vez que chegara de viagem naquela tarde.

– Que droga, acho que deixei meu perfume em casa!

– Calma, garota! Vamos te ajudar a procurar.

Em menos de dois minutos, acharam o frasco, Kara borrifou um pouco no pescoço e nos pulsos, tremendo de nervosismo.

– Deixa eu te ensinar um truque, Ka – disse Winn. – Passa no decote.

– O quê?

– Isso mesmo. Na verdade, você deveria ter passado antes de se vestir, mas tudo bem, não temos mais tempo – ele mesmo apanhou o frasco e borrifou três vezes.

– Hei! Assim é demais.

– Não é – teimou ele. – Agora vamos de uma vez!

Kara respirou fundo, como que tomando coragem. Mike e Winslow sorriram para ela, apanharam os presentes que tinham deixado na sala e foram em direção à porta.

Afinal de contas, era só atravessar o corredor...


* * *


Lena afivelou o cinto de segurança e olhou pelo grosso vidro da pequena janela. O único comissário de bordo avisou que começariam a taxiar pela pista naquele momento e ela assentiu apenas com um movimento de queixo.

Sentado diante de si, Jim lia uma revista de economia fingindo uma expressão de seriedade.

– Ele estava um cordeirinho hoje... – comentou Jim.

– Quem?

– O cliente – ele percebeu que tirara Lena de suas divagações.

– Ah, é.

– Está tudo bem, Lena?

– Sim – ela buscou o olhar do comissário. – Quanto tempo de vôo?

– Trinta e cinco minutos, mas pode demorar um pouco por causa da torre em NC, até conseguirmos autorização para pousar.

– Certo – ela mordeu o lábio, ansiosa.

– Ora vejam, compromissos aguardam a magnânima Doutora Luthor na cidade?

Um olhar silencioso e de profundo desprezo foi a resposta de Lena para a pergunta de Jim.

Depois que o jato decolou, o assistente desistiu de iniciar qualquer tipo de conversa, e ficou, como Lena, apenas observando o céu noturno, acima das nuvens.

O comissário avisou quando passaram a sobrevoar National City, e os quinze minutos que se seguiram, com o avião dando voltas para finalmente pousar, pareceram horas para a advogada.

Incumbindo Jim de cumprimentar o comandante e resolver quaisquer pendências, ela apanhou sua bolsa, a pasta do caso e saiu correndo em direção aos táxis.

Chegou em casa, atirou tudo sobre o sofá e correu para o banho. Já estava atrasada, mas nem tanto quanto tinha imaginado.

Secando-se, vestindo-se e procurando o presente pelo quarto, tudo ao mesmo tempo, Lena ficou discutindo consigo mesma se apanharia um táxi ou se iria de carro até o prédio onde Andrea morava.

Ainda teria os vinte minutos de percurso para acalmar seu nervosismo...


* * *


Andrea abriu a porta com um sorriso luminoso no rosto. Winn foi o primeiro a abraçá-la, calorosamente, desejando as felicidades de praxe.

– Que bom que vocês vieram!

– Até parece que não viríamos, né And? – Mike se adiantou para abraçá-la também. – Parabéns, amiga!

– Obrigada!

– Trouxemos um presente – Winn deu um empurrão de leve em Kara, ao que a garota ficou com o rosto completamente vermelho.

Andrea riu e abraçou a amiga.

– Feliz Aniversário – disse Kara, ainda envergonhada.

Num ímpeto, Andrea a abraçou de novo, dessa vez mais apertado.

– Ka, obrigada! Mesmo. Sei que você teve de interromper as suas férias.

– Os meninos disseram que o seu aniversário é a festa do ano. Você acha mesmo que eu ia perder a boca livre? Hum?

Os quatro riram, felizes, e Andrea fechou a porta. Recebeu os presentes, abriu e agradeceu por cada um, com novos abraços. Enquanto ela fazia isso, Winn se ocupara de apanhar as bebidas na cozinha, e Mike já avançara sobre os salgadinhos e doces, na mesa.

– E a Lena? – perguntou Mike, antes de colocar um brigadeiro na boca.

Andrea cerrou os punhos involuntariamente. No mesmo segundo, todos perceberam que a pergunta a tinha incomodado profundamente.

– Acho que está cuidando de algum processo, como sempre – respondeu.

Encarando e analisando Andrea, Kara intuiu que o olhar chateado dela ocultava mais alguma coisa. Não era simplesmente pelo atraso... Andrea parecia esconder sua raiva por uma razão que Kara ignorava.

– Pois é... Chato isso – Winn resolveu dizer qualquer coisa para quebrar o silêncio.

Logo mudaram de assunto, Mike contou uma anedota ocorrida antes das férias, nos corredores da faculdade, e todos já gargalhavam alto. Kara imediatamente percebeu que o protagonista da história era um ex-namorado de seu novo amigo.

Ficou alguns instantes pensando que ainda tinha muito a aprender sobre eles. Mas isso não a impediu de fazer um comentário de duplo sentido sobre Mike e Winn.

Andrea sorriu e concordou, enquanto os dois garotos baixaram a cabeça, envergonhados. Já nem se esforçavam mais para esconder que havia muita coisa entre eles, além de amizade.

– Falando nisso... – Winn resolveu dar o troco. – Não sei... Mas sabe quando um passarinho verde pousa na sua janela e conta uma coisa? – brincou. – Sinto cheiro de romance no ar!

Kara ruborizou de novo, dessa vez violentamente. Mike sufocou o riso engolindo mais um brigadeiro e Winn continuou com o olhar ansioso, esperando uma reação da aniversariante.

– Isso me lembra que eu tenho uma coisa para contar para vocês – disse ela, sorrindo.

– Oba! – comemorou Winn, sentando-se ao lado de Kara, no sofá.

– Hoje eu ganhei o melhor presente de aniversário que poderia sonhar... – continuou Andrea, encarando os próprios pés, envergonhada.

– Acho que eu já sei o que foi... – Mike riu baixinho.

– A Stacy e eu voltamos. Estou namorando de novo!

Não fosse por Winn ter se engasgado com o martini, tossindo com força e canalizando todas as atenções para si, Kara teria acreditado que fora jogada em outra dimensão.

Por conveniência, sabia disfarçar, pelo menos um pouco, as suas emoções em público. Ali, certamente, não teria conseguido. Então agradeceu por Andrea ter ido buscar um copo de água para o amigo. Assim, não viu os olhos vazios da garota, que tinha no rosto uma expressão inconfundível de choque.

Depois de se certificarem que Winn estava melhor, o susto inicial havia passado. O susto pela notícia, não pelo infortúnio dele.

– Então... Aaam... – disse Mike. – Vocês voltaram. Formidável.

– É, acho que sim – disse Winn.

Andrea tomou fôlego, um pouco chateada.

– Eu sei que vocês ficaram de mal com ela, pelo que ela fez. Eu entendo, sei que fizeram isso porque são meus melhores amigos. Mas... Eu sou apaixonada pela Stacy, não posso fugir disso.

Por alguns segundos, todos fizeram silêncio.

“Como eu queria que vocês soubessem por mim primeiro, pedi para ela vir só mais tarde – disse Andrea.

– Mas ela...

Os três encararam Kara, que até então estava quieta.

– Ela...? – perguntou Andrea.

“Puta merda, onde eu estava com a cabeça de abrir a boca” pensou Kara.

– Ela é sua namorada – disse, tentando formular alguma coisa melhor. – Hoje é o seu aniversário, então... Chama ela.

– Isso – emendou Winn, cordial.

– É, já que a Lena não veio mesmo...

– O que tem uma coisa a ver com a outra? – perguntou Mike.

Andrea estava abrindo a boca para responder quando todos ouviram a campainha. Ela respirou fundo, como se consultasse a sua consciência, pensando se atenderia ou não.

A campainha tocou de novo e ela finalmente se levantou, caminhando até a porta. Quando abriu, viu o corredor vazio. Achando tudo muito estranho, já ia fechando a porta quando viu um pacote envolto em um laço, no chão.

– Lena, é você? – chamou.

Nada.

“Lena, eu sei que é você... – disse impaciente.

Ouviu o ruído do salto marcando os passos dela. Lena havia se escondido na escada, dois lances acima. Por alguns instantes, hipnotizada, Andrea quase conseguiu esquecer de todas as coisas que tinha para dizer a ela.

Lena estava absurda e incrivelmente linda, como Andrea jamais a vira. Como se ela tivesse passado meses se produzindo.

– Que sem graça, se eu não tivesse sido a última, aposto que não adivinharia – brincou.

Andrea queria rir, queria fechar a boca, queria dizer alguma coisa, mas não conseguiu fazer nada. Sequer apanhou o pacote, ainda no chão.

– Entra – disse, num tom seco.

Depois de Lena passar por ela, estranhando a sua reação, Andrea fechou a porta.

– Oi, gente – cumprimentou Lena, sentindo-se ligeiramente deslocada. Sequer dera um abraço em Andrea.

– Eu acho ótimo que estejam todos aqui para ouvir o que eu vou te dizer – anunciou Andrea, nem dando chance para Kara, Mike e Winn cumprimentarem Lena.

– Aconteceu alguma coisa, And?

– Aconteceu?

– Pela sua cara, eu imagino que sim – disse Lena.

– E você nem desconfia, não é mesmo?

Em completo suspense, os outros apenas assistiam.

“Você se fez passar por minha amiga todo esse tempo, Lena, e me apunhalou pelas costas!

– Do que você está falando? – perguntou a advogada, ainda atônita com a recepção.

– Não finja ainda mais, Lena. Estou falando da Stacy e da chantagem absurda!

Lena fechou os olhos, engolindo em seco. Sabia que estava se entregando com aquela atitude, mas não havia meios de ser tão fria quando o assunto era Andrea. No tribunal era sempre mais fácil.

– O que foi que ela disse?

– Você não sabe?

– Não.

– Você dormiu com ela, Lena!

– Dormi.

– E ainda admite! Na minha cara! Ah, eu odeio tanto você! Eu sofri por meses... Meses, Lena, e você dizendo que queria me ver melhor! Me consolava com palavras falsas e depois ia pra casa da Stacy! Víbora!

– Foi isso que ela disse?

– E não é a verdade? Você a chantageou pra continuar, não foi? Brincou com os sentimentos dela e com os meus. Ameaçou contar tudo, usou o medo que ela tinha de me machucar mais! – disse Andrea.

Lena apenas balançou a cabeça. Cogitara a hipótese de Stacy ter armado aquele engodo quando Carina a dispensou, pelo telefone, mas não poderia ter certeza. Porque aquilo significa ir longe demais, até mesmo para alguém detestável como Stacy.

– Você a perdoou? – perguntou depois de algum tempo.

– Se eu a perdoei? Eu... Como assim? É só isso que você tem a dizer? Quer saber se eu perdoei a Stacy? Francamente, eu convivi com um monstro esse tempo todo.

– Estão juntas? – ela insistiu.

– Eu não sei de mais nada, e isso não é da sua conta.

– Então decidiu perdoá-la – Lena falou mecanicamente.

Andrea hesitou. Olhou para qualquer canto da sala para não encarar o rosto de seus amigos e muito menos o de Lena.

– Eu a amo, de qualquer forma. Vocês todos sabem disso.

Lena analisou, discretamente, a reação de Kara àquela frase.

“Lena? – Andrea voltou a falar.

– Hum?

– Se puder fazer uma única coisa boa por mim na sua vida, não me procure mais.

Ela assentiu apenas com um gesto, não olhou para os outros e nem se despediu. Na porta, virou-se de novo, mas antes que pudesse acrescentar alguma coisa, Andrea foi categórica:

“Fora!

Com aquele clima pesado, ninguém soube exatamente o que dizer, sequer algo trivial que fosse para mudar de assunto. Andrea se recompôs, aos poucos, e pediu desculpas pela “cena”.

– Você estava falando sério, And? – perguntou Winn.

– Nunca falei tão sério na minha vida. Stacy me contou, ontem, toda a história.

– E você acreditou nessa maluquice? – perguntou Mike.

Antes de responder, Andrea respirou profundamente, para recobrar a calma.

– Qualquer dúvida que restasse... Bem, Lena não negou, não é mesmo? – aguardou, e como ninguém disse nada, voltou a falar. – Olha, eu... Eu já volto.

Andrea foi para o quarto e seus amigos respeitaram, sabendo que ela precisava de um tempo a sós.

De cabeça baixa, Kara foi até a janela, cruzando os braços diante desta, repassando tudo o que acontecera em sua vida desde que havia se mudado para aquele prédio.

Ainda tentava discernir o que lhe acometera quando Andrea dera a notícia... “O melhor presente que poderia ter recebido”. Voltar com a namorada. E ela, Kara, era o quê?

Uma grande amiga, concluiu. Coisa que jamais deveria ter sonhado em deixar de ser.

Quase quinze minutos depois, com a garota na mesma posição, olhando para o mesmo ponto vago no infinito, Winn se aproximou. Tinha as duas mãos nos bolsos frontais da calça, e tirou uma delas para pousar no ombro da garota.

Ficou olhando através da janela também, quieto. Depois de alguns instantes, afagou as costas de Kara, carinhosamente.

– Eu fiz papel de idiota, não? – perguntou Kara.

Ele não respondeu. Continuou com a mão sobre o ombro dela, mas a trouxe para junto do seu corpo, de maneira terna. A outra mão continuava no bolso e o olhar, no horizonte.

Quando não se sabe o que dizer, gestos falam por si...

****

O Triângulo Onde histórias criam vida. Descubra agora