Indo à Luta

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Andrea levantou devagar, procurando não se mexer muito sobre o colchão. Notou que o sono de Kara ainda era pesado e apanhou seu robe, arrastando-se até o banheiro. Apesar da cara de sono, tinha um sorriso maravilhoso no rosto. Escovou os dentes sem fazer barulho, deixou o quarto e começou a preparar uma bandeja. Quinze minutos depois, munida da mesma, acordou a namorada com um beijo na testa.
       
-- Hmm... -- Kara apenas mudou de posição e seguiu de olhos fechados.
       
-- Meu bem...?
       
-- Só mais um minutinho, Andrea... -- murmurou ela.
       
-- Tudo bem -- Andrea sorriu, beijando o pescoço e os ombros de Kara. -- Eu vou tomar café da manhã sozinha, hein?
       
-- Você disse café da manhã?
       
Pela primeira vez a mais nova prestou atenção no aroma que inundava o quarto. Abriu os olhos, sorriu de maneira meio torta, mas ainda assim encantadora, e depois encarou a bandeja.
       
-- Vamos tentar de novo -- sorriu Andrea. -- Bom dia!
       
-- Bom dia, linda! -- Kara abraçou-a com força e começou a se acomodar na cama.
       
-- Dormiu bem?
       
A resposta foi um risinho sacana que Andrea compreendeu imediatamente. Kara adormecera de exaustão na noite anterior, e Andrea era a principal culpada por aquilo. Orgulhosamente ela sabia.
       
-- E você?
       
-- Como um anjinho.
       
-- Mas você é um anjinho. Um anjo na minha vida!
       
Beijaram-se longamente e terminaram o café comentando amenidades.
       
-- Pode deixar que eu cuido da louça -- ofereceu-se Kara.
       
-- Damos um jeito nisso depois. Vista uma roupa, meu bem, eu quero te mostrar uma coisa -- disse Andrea.
       
-- O que é?
       
-- Surpresa.
       
-- Ah, Andrea, você sabe que eu sou curiosa!
       
-- Sim. E isso só te torna ainda mais encantadora, Ka.
       
Ganharam as ruas. Kara nem precisou usar seus dons de dedução -- cada vez mais aguçados -- pois as duas logo foram parar em uma imobiliária e Andrea apanhou uma chave que deixara reservada. Quando chegaram ao destino, a quatro quarteirões de onde estavam morando, Andrea abriu um portão.
       
-- É aqui? -- quis saber a mais nova, roendo-se de curiosidade.
       
-- Quero que seja muito sincera, ouviu bem? Se não gostar, continuamos procurando.
       
-- Mas... Era eu quem deveria ter feito isso.
       
-- Você tem a sua faculdade e o estágio, Kara. Não me custou nada. E não quero que você pense que fiz isso porque não quero mais você lá em casa. Vai ser tudo como antes, lembra? Cada uma com o seu canto, mas juntas sempre que pudermos.
       
-- Pode deixar! -- Kara a abraçou com força.
       
A estudante gostou do apartamento. Era parecido com aquele no qual já tinha morado -- e com o de Andrea. Pequeno, funcional, mas agradável. O melhor de tudo era que as despesas caberiam no seu bolso e ela poderia continuar a faculdade e o estágio na Martelli sem apertar demais suas contas.
       
-- Eu acho que vou gostar de vir aqui, lhe visitar de vez em quando -- comentou Andrea, olhando pela janela do que seria o quarto.
       
-- De vez em quando, é?
       
-- Bem, talvez eu venha bastante. Vai depender da dona da casa, se ela me quiser aqui.
       
-- Não seja boba, Andrea, essa vai ser a sua segunda casa!
       
Partiram de volta para a imobiliária. E só então Kara se deu conta de que precisaria de um avalista para o negócio. Andrea sorriu e disse para a namorada não se preocupar. Mike tinha um apartamento em seu nome e daria a garantia, e Winn tinha se proposto a pagar a mudança, como presente para as duas. Presente de “descasamento”, nas palavras dele.

* * *

Logo depois da sua mudança, Kara deixou a aula de Introdução ao Direito Constitucional dez minutos antes do intervalo porque terminara as suas leituras. Sentou-se na cantina e pediu um café e o jornal do dia. Notou que uma de suas colegas escolhia um lanche no balcão.
       
-- Bia! -- chamou.
       
-- Oi, Kara. Que bom te ver aqui. Posso me sentar contigo?
       
-- Claro. Não vi você na aula -- comentou.
       
-- Ah, eu não faço todas as cadeiras.
       
-- Eu fui ver a lista do vestibular e não achei o seu nome -- disse Kara.
       
-- Vim transferida. Já tinha feito alguma coisa em uma faculdade particular.
       
-- Ah, sei.
       
-- Atualizando-se um pouco? -- Lucy apontou para o jornal.
       
-- É, pra variar. Eu tava procurando um lugar pra morar até a semana passada e aí peguei o costume de ler jornal todo dia.
       
-- Ah, eu leio também. E aí, achou?
       
-- O quê?
       
-- Lugar pra morar.
       
-- Sim, sim. Mudei no domingo. Olhe, não pense que eu estava te investigando e nem nada, eu só queria descobrir o seu sobrenome.
       
-- Poderia ter perguntado -- Lucy sorriu. -- Mas por que queria saber?
       
-- Para te procurar no nas redes sociais -- disse.
       
-- Deixa que eu adiciono você.
       
-- Tá, eu estou como-
       
-- Já te achei -- disse ela, rapidamente, e então corou. -- Deixei nos favoritos... Não sabia se você ia me aceitar.
       
-- Ué, por que não aceitaria? Era só me dizer quem você é.
       
-- Ah, fiquei com medo, sei lá, você afinal de contas é a estagiária da Martelli e eu sou só uma garota da faculdade.
       
-- Você é a única amiga que eu já fiz no curso, não se preocupe com isso. Não sou uma esnobe.
       
-- Que bom.
       
Trocaram um olhar demorado e por uma razão que só entenderia mais tarde, Kara se sentiu culpada. Andrea já tinha comentado aquilo, que ela conheceria gente nova na faculdade e fatalmente iria mudar. Sua namorada tinha medo que ela se desse bem com outra pessoa e que aquilo atrapalhasse a relação. Na hora Kara tinha rido e achado um absurdo. Mas quando ouviu a própria voz convidando Lucy para almoçar depois da aula, notou que poderia haver um fundo de verdade no ciúmes antecipado de Andrea.
       
Escolheram um shopping próximo da Martelli para a refeição e discutiram música, filmes, gostos em comum. Kara gostava mais da nova Lucy a cada descoberta que fazia, e o que mais a assustava era que Lucy também dava muitas mostras de estar gostando dela.
       
-- Você pensa em seguir o quê, no direito?
       
-- Ainda nem tenho idéia -- admitiu Lucy. -- Mas deve ser normal no começo do curso. Você que é a exceção, senhorita criminalista.
       
-- Que isso -- Kara corou. -- Até “ontem” eu queria ser médica.
       
-- E aí está você olhando para o relógio, ansiosa para devorar mais um caso dentre os mais importantes do País.
       
Kara se sentiu mal por ter sido pega.
       
-- Desculpe, eu só não gosto de me atrasar pra nada. Mas ainda dá tempo de conversar mais um pouco. E, olhe, eu não tenho nada a ver com os casos mais importantes.
       
-- Nem brinca, Kara, está em todos os jornais que o caso Simmons ficou com a Martelli. Até o professor de Direito Penal comentou ele na aula.
       
-- É...
       
-- Todo mundo olhou pra você nessa hora -- Lucy riu.
       
-- Nem foi todo mundo. E não posso contar nada, né?
       
-- Claro, eu entendo. É um mundo muito cruel, quem fica de boca fechada vai mais longe.
       
-- Exatamente.
       
-- Sinceramente, posso não saber o que eu quero, mas já sei o que eu não quero, e é Direito Penal. Imagine só, conviver com gente tipo essa viúva aí, que meteu uma bala na cabeça do pai do próprio filho.
       
-- Até que se prove o contrário, ela é inocente -- disse Kara.
       
-- Ah, mas todo mundo sabe que é culpada. Nesses casos a defesa só pode mesmo tentar aliviar a pena dela.
       
-- Ou não -- Kara estava começando a gostar demais do seu tom altivo.
       
-- Tá brincando? Vai dizer que a doutora Luthor vai alegar inocência da cliente?
       
-- Não, não -- Kara tentou se descontrair.
       
Lucy riu e sorveu seu suco.
       
-- E a mudança, foi tranquila? Vou mudar de assunto porque notei que você não gosta de comentar. Não quero te deixar chateada.
       
-- Você não deixa. E a mudança foi legal. Quando estiver tudo arrumado eu te chamo pra ir lá em casa, conhecer. Agora tá uma bagunça, eu ainda nem dormi uma noite lá.
       
O olhar de Lucy foi significativo e Kara se arrependeu imediatamente do que dissera.
       
-- Hmmm. Sinto cheiro de romance.
       
-- Nada, dormi na casa de uns amigos -- mentiu. -- Bem, agora eu tenho mesmo de ir. Nos vemos na aula, amanhã?
       
-- Claro.
       
Kara ocupou sua mesa e imediatamente retomou o trabalho do dia anterior. Distraiu-se com isso por cerca de duas horas, até o aparecimento de Jim, que lhe fez algumas perguntas de caráter pessoal das quais ela se saiu muito bem sem precisar mencionar muita coisa e nem parecer chata.
       
Já no final do expediente ela resolveu ir falar com Lena sobre uma dúvida que lhe surgira, e pelo péssimo costume de entrar sem bater, interrompeu uma discussão inflamada entre ela e o dono da firma.
       
-- Am... Desculpa, eu volto depois -- disse, sem saber onde se enfiar.
       
-- Fique -- disse George, enérgico. -- Eu já terminei -- ele olhou para Lena seriamente. -- Daqui a poucos anos eu já terei quem colocar no seu lugar, então controle o seu gênio, ou também saberei perder a minha cabeça, doutora.
       
Kara deu espaço para que ele saísse pela porta e se aproximou da mesa da amiga, hesitante.
       
-- Algum problema, Kara?
       
-- N... Não. Desculpa, eu deveria ter batido.
       
-- Quer falar comigo?
       
-- É só um recurso bobo, pode ser depois. Como está?
       
-- Como sempre.
       
-- Ele parecia furioso.
       
-- Engraçado, eu não notei.
       
Kara sorriu.
       
-- Ainda o mesmo problema com o caso Simmons?
       
-- O “mesmo”? Não pensei que o caso tivesse algum.
       
-- O Jim me contou.
       
-- Oh, quem poderia imaginar. A língua dele é quase do tamanho da sua.
       
-- E por isso, bem menor que a sua cara de tacho, agora.
       
Lena estreitou os olhos.
       
-- Uma palavra minha e você dança aqui dentro. Pensou nisso antes de me provocar?
       
-- Claro. Tenho sempre em mente a imensa popularidade da qual você goza com o doutor Martelli. Acabei de ter mostras disso.
       
A advogada engoliu qualquer coisa que pudesse ter planejado dizer em seguida.
       
-- Então... -- inclinou-se na direção de Kara. -- O recurso bobo...
       
-- Ah sim...

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