Ironia

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Kara almoçou ainda no campus e chegou no escritório no começo da tarde. Assim que entrou, deparou-se com o hall quase vazio. Conforme ela confirmara por telefone, sua namorada já tinha voltado do intervalo.

Esperando encontrar Lucy sozinha tomando conta da recepção, Kara ficou surpresa ao ver que Jim também estava ali. Disfarçadamente, Kara ficou ouvindo a conversa. E poucos segundos foram suficientes para que ela confirmasse uma impressão que já vinha de outros tempos.

Com um olhar incisivo, encarou a namorada antes de finalmente rumar para a sua sala. Lá, sozinha já que os três novatos ainda estavam na rua, Kara ficou tentando decidir se a sensação de ter ciúmes de Lucy era boa ou ruim.

A novidade a deixou surpresa, coisa que ela teve de admitir enquanto refletia. Então, satisfeita, chegou à conclusão de que estava, sim, conseguindo se dedicar àquele namoro do modo que Lucy esperava e merecia.

Elas estavam juntas, oficialmente, a menos de uma semana, mas a diferença era clara. Por vezes, abraçada à outra, Kara perguntou em silêncio a si mesma por que tinha demorado tanto tempo para voltar a namorar.

Lucy era carinhosa, atenciosa, mimava Kara de um modo totalmente novo, deixando a garota encantada.

Acostumada a viver sozinha, por conta de todos os revezes que a vida lhe dera, Kara quase tinha esquecido do quanto era bom poder dar vazão as suas carências, do quanto era doce ter alguém sempre preocupada com ela, verdadeiramente presente, alguém que lhe ouvia contar as histórias mais bobas com a mesma atenção de quem assiste a um filme que adora.

Havia, também, um ponto ainda mais crucial: Lucy amava Kara, e demonstrava isso em todas as suas palavras e ações.

Mesmo sabendo que Jim não tinha chances, Kara ficou perturbada e insegura. Ficou com medo de que, sabendo do interesse de outra pessoa, Lucy pudesse juntar os contras que existiam na relação delas, e começar a questionar os prós.

Intimidada, aproveitou o fraco movimento àquele horário e voltou para a recepção. Para seu alívio, Jim já tinha deixado o balcão, mas a chefe das secretárias já estava de volta.

Com um aceno, Kara chamou a atenção da namorada e seguiu até a sala de arquivos, que quase ninguém mais usava.

– Oi, linda! – Lucy aproveitou para abraçar Kara assim que fechou a porta. – Como foi a aula?

– Foi boa – ela respondeu sem graça.

– Então, o que houve?

Kara estava abrindo a boca para mencionar Jim quando algo a impediu. Apenas a antecipação mental de qualquer frase referente àquilo foi suficiente para que ela percebesse o papel ridículo ao qual quase tinha se prestado.

– Vim roubar um beijo. Já faz umas cinco horas desde o último, né?

O sorriso de Lucy foi tão espontâneo e tão bonito, que Kara se entregou completamente ao beijo que se seguiu. Permitindo que Lucy a conduzisse, a garota tentou simplesmente não pensar em nada e assim, quando os lábios de ambas finalmente se separaram, o sorriso maravilhoso, dessa vez, estava estampado na face de Kara.

– Eu sei que tínhamos combinado de não fazer nada aqui na firma, mas... – disse Kara, sentindo o rosto ficar vermelho.

Lucy riu e ficou fazendo carinho no rosto da namorada.

– Eu também estava morrendo de saudades. E o Jim não voltava nunca pra sala dele... – reclamou.

– É, ele parecia estar muito envolvido na conversa... – disse Kara, num tom sério.

Por pouco, Lucy não gargalhou.

– Linda, você não precisa ter ciúmes de ninguém, está bem? Eu sou sua, completamente sua. Além do mais, fora o fato de ser feio e chato, o Jim é homem, né? Francamente...

A careta da namorada fez Kara rir alto. Detidas na conversa, as duas levaram um tremendo susto quando a maçaneta da porta girou. Impulsivamente, Kara e Lucy se afastaram.

– Mas que coisa estranha, deveria estar aqui – disse Kara, forçando um tom estritamente profissional.

Entendendo o objetivo dela, Lucy respondeu na mesma hora:

– Eu já disse, Kara, nunca vi essa pasta aqui. Mas posso perguntar para as outras...

Com um olhar curioso, George as inquiriu:

– Problemas?

– Oi, George – cumprimentou Kara. – Nada... Nada sério. E você?

Ele espiou rapidamente a reação de Lucy antes de responder:

– Também vim buscar uma pasta. Afinal é para isso que essa sala serve, não?

As duas decidiram assumir que era uma pergunta retórica e continuaram caladas. Notando isso, George insistiu:

– Bem, não vai procurar a sua pasta, Kara?

– Já desisti. Não deve estar aqui.

Lucy ainda completou, socorrendo a namorada:

– Por que você não pergunta para o Marcus se não está com ele? Talvez ele tenha decidido verificar a mesma coisa que você...

– Boa idéia. Vou agora mesmo!

Tão rápido quanto possível, Kara deixou a sala. E Lucy, após sua oferta de ajuda ao chefe ter sido educadamente recusada, fez a mesma coisa.

“Foi por pouco” – Kara digitou no celular e enviou a frase por mensagem.

Um pouco mais calma depois do susto, Lucy sorriu, encarando o seu telefone, mas voltou a ficar tensa quando, entreouvindo as falas de sua colega, percebeu que o dono do escritório havia mandado chamar Kara para a sua sala.

Quando a estagiária passou pela recepção, as namoradas trocaram um olhar nervoso e aflito, mas Kara foi em frente. E depois de uma leve batida, entrou na sala do chefe.

– Queria falar comigo, George?

– Sente-se, Ka.

Ela obedeceu, tentando não parecer apavorada. George foi direto ao assunto:

– Percebi que, estranhamente, a tutela do seu estágio foi parar no nome do Jim.

Kara não sabia se ficava aliviada por George não estar se referindo ao quase flagrante na sala de arquivos ou se ficava ainda mais temerosa com o tema inesperado.

– É mesmo? – disse qualquer coisa apenas para não ficar muda.

– Uhum. Foi um pedido seu?

– Não...

– Eu gostava da Lena fazendo esse papel... – comentou George.

Kara se limitou a encarar o chefe com curiosidade.

– Bem, mas ela deve ter tido as suas razões e devo dizer até que concordo. Estranhamente ético da parte dela.

– Ético?

George se mostrou desconfortável ao tocar naquele assunto.

– Tecnicamente qualquer tipo de relação pessoal entre colegas de trabalho pode acabar sendo mal interpretada.

Kara prendeu a respiração. Depois de um tempo começou a pensar que George poderia estar se referindo à amizade delas, mas o que lhe ocorreu no primeiro instante foi que ele acreditava, como Lucy, que Kara e Lena estavam tendo um caso.

Assim, teria sido bem melhor que ele tivesse apanhado Kara e Lucy aos beijos na sala de arquivo. Ou não.

Totalmente chocada, Kara começou a rir.

– Eu disse alguma coisa engraçada? – quis saber o chefe.

– Não, claro que não. Desculpe, George, é que...

– Estou ouvindo – clareou ele, ao notar que Kara hesitara.

– O Jim ficou com a tutela quando era supervisor da Lena. Depois, acho que ela esqueceu de desfazer a troca. Foi só isso.

George refletiu por alguns instantes.

– Muito engenhoso da parte de vocês.

Kara ficou muito vermelha e ia abrindo a boca para alegar que não tinha nada a ver com o assunto, quando lembrou que assim fazendo, estaria incriminando Lena.

Notando o silêncio dela, George foi adiante:

– Você ajudou na idéia, não ajudou? Quem sabe até pediu isso como um favor a ela... Para que escapasse do ofício informando sobre a suspensão.

Kara o encarou nos olhos e respondeu:

– Talvez.

George ficou sério por alguns segundos, e depois balançou a cabeça, derrotado.

– Conheço o Marshal de longa data. O seu coordenador de curso, eu quero dizer. Jamais permitiria que aquele ofício fosse anexado ao seu currículo. Eu quis apenas dar um susto na Lena.

Kara não disse nada, mas continuou sustentando o olhar de George.

– Você não sabia da troca, até a reunião com ele – insinuou.

Mais uma vez, Kara ficou em silêncio, ao que George suspirou cansado.

– É por essas e outras que o seu estágio não vai mais voltar pra ela.

– Mas George, eu realmente não sei de onde as pessoas tiram isso. Definitivamente, a Lena e eu não estamos envolvidas! – protestou Kara. – Caso contrário, você seria um dos primeiros a saber – completou.

– Bem, Kara, você eu não sei. Mas ela está. A Lena não é de arriscar o próprio nariz por outra pessoa, nem nunca teve a ousadia de mentir pra mim.

Kara ficou tentando impedir que aquelas palavras causassem algum tipo de efeito nela.

– Por que, afinal de contas, eu fui chamada a esta sala? – resolveu mudar de assunto.

– Vou deixar as coisas como estão, na prática. Mas na teoria, para evitar problemas futuros, serei eu mesmo o seu tutor.

Kara arregalou os olhos.

– É sério?

– Sim, Kara. É sério, e você fez por merecer – garantiu ele. – Agora pode ir.

Kara tentou conter seu ímpeto de abraçá-lo, mas não conseguiu. Surpreso, George demorou a reagir, mas acabou retribuindo. Ele gostava de quando as pessoas conseguiam ser informais com ele. Era tão raro, que chegava a ser tocante.

Sabendo que a namorada deveria estar curiosa, Kara logo arranjou uma boa desculpa para chamá-la até a sua sala e contar o ocorrido.

– Então foi só isso? – recapitulou Lucy. – Ele não perguntou nada sobre a gente estar lá na sala?

– Sequer tocou no assunto. De verdade, acho que ele nem percebeu.

– Tomara mesmo – disse Lucy.

Kara tinha ocultado parte da conversa que tivera com o chefe. Depois de todas as desconfianças de Lucy, ela não queria reacender a chama da dúvida. Mas assim que a namorada teve de voltar para a recepção, Kara acabou pensando em Lena, e na frase que George dissera.

Lembrando que Andrea havia acabado de voltar para o Brasil, Kara tratou de logo afastar qualquer conjectura, afinal, desde sempre ela sabia que esquecer Lena não seria uma tarefa fácil, e que percalços como as insinuações de George cruzariam o seu caminho mais vezes.

Por mensagem, Kara convidou a namorada para passar a noite consigo, e se pôs a planejar uma surpresa para ela. Com isso na cabeça, o expediente passou depressa.





* * *



Andrea reservou a tarde de terça-feira para fazer compras. Com a namorada presa em uma audiência, a garota seguiu para o shopping, um programa indispensável na readaptação à sua cidade e ao modo de vida que tinha deixado para trás.

De posse de algumas sacolas, passou na livraria para ver se Winn conseguiria uma folga. Os dois haviam se falado apenas por telefone desde que Andrea tinha voltado.

Com o sucesso do plano, passaram no mercado antes de seguirem de táxi até o apartamento de Lena.

Ainda no elevador, Winn comentou:

– Nossa, parece que faz um século que eu não venho mais aqui.

– É, Winn, que belo espião você me saiu... Resolveu sumir da vida social da Lena justo quando eu mais precisava.

O garoto riu e respondeu enquanto Andrea abria a porta.

– Eu não tenho culpa que ela, a Ka e a Carina andavam pra cima e pra baixo com o Mike.

– Vocês brigaram mesmo, hein?

– É, dessa vez foi totalmente definitivo. Cortamos relações.

– Puxa, que chato, mas o que foi que aconteceu?

– Aquela perua da mãe dele resolveu fofocar que eu liguei pra lá, e ele veio pra cima de mim querendo tirar satisfação.

– Espera! Espera! Então o Mike sabe que você descobriu sobre final de semana?

– Relaxa, boba. Ele não vai abrir o bico pra Lena.

– Como você pode ter certeza?

– Bom, primeiro, eu não disse que contei pra você, lógico. E segundo, ele mesmo garantiu que não iria contar.

– E você acreditou?

– Acreditei, ué. Como ele mesmo disse, a Le já não tem ido com a minha cara mesmo. E isso é verdade. Você precisa aliviar a minha barra com ela, amiga.

– Pode deixar.

– Mas voltando ao assunto daquele final de semana, o que foi que aconteceu?

Winn já havia perguntado aquilo, mas Andrea alegou que preferia contar pessoalmente, uma vez que os detalhes eram muitos.

– Eu fiquei cega de ódio depois do que você me contou. Aí liguei para a Ellie e resolvemos sair.

– Ellie é a maluquinha?

– Isso.

– Tá, e daí?

Andrea encarou o chão, decepcionada.

– Acabei ficando com a primeira que deu mole.

Winn arregalou os olhos.

– And!

– Eu sei que foi uma mancada, tá legal?

– Nossa, eu morri pra sempre com essa notícia... Nem sei o que dizer. Mas, foi coisa de balada ou...?

Andrea o encarou de novo, envergonhada.

– Fui pra casa dela – admitiu.

Cobrindo o rosto com as mãos, Winn deixou seu corpo tombar no sofá.

– Minha nossa!

– E agora essa maluca fica me ligando sem parar! – contou Andrea. – Já pedi pra Ellie despistar a menina, mas ela não conseguiu.

– Que mancada, And! Por que foi dar o seu telefone?

– Eu estava bêbada, Winn. E tinha acabado de saber da cachorrada da Lena... Sei lá, não pensei direito.

– Entendi. Aí o arrependimento bateu e você resolveu voltar pra cá... – comentou ele.

– Mais ou menos – respondeu Andrea. – A história ficou um pouquinho mais complicada depois que a Lena me ligou, enquanto eu ainda estava com a Hanna.

– Então a Lena sabe??

– Claro que não, né? Até estranhou por eu atender sussurrando, mas inventei uma desculpa qualquer e colou. Você acredita que ela ligou pra contar que estava lá na casa de férias?

– Amiga, tem certeza de que você não está inventando tudo isso?

Andrea riu antes de negar. Logo depois, Winn continuou:

– Isso parece enredo de novela mexicana. A cada frase sua é uma reviravolta no caso!

– Pois é. Eu vim pra descobrir o motivo da Lena ter ligado.

– Por que não pediu pra mim?

– Foi mal, Winn, mas isso eu quero desvendar pessoalmente. Se o Mike só fez o escândalo agora, isso acaba com a minha teoria de que a Lena ligou porque desconfiou que eu já estivesse sabendo.

– Era seu único palpite?

– Não, mas era o menos cruel e o que mais fazia sentido.

– E agora?

– Agora a Carina se mandou do país e você brigou com o Mike. Vou ter de usar a Kara para descobrir.

– Tá, mas descobrir o quê?

– Com qual das duas a Carina dormiu.

– Bom, se era só isso, nem precisa gastar o seu latim. Isso eu sei. Foi com a Kara.

– Merda.

– Preferia que ela tivesse transado com a Lena?

– Claro que não.

Ao ver a expressão de dúvida no rosto do amigo, Andrea tratou de explicar:

– Eu acho que a Lena armou tudo pra ficar com a Carina. Só que, inesperadamente, a Carina não quis. Por isso a Lena resolveu me ligar e contar tudo, achando que eu não levaria a mal um final de semana inocente entre os “amiguinhos”. Ah, francamente!

– Andrea, Andrea, esse seu ciúme doentio vai acabar espantando a Lena – alertou Winn.

– Vai nada. A Lena é louca por mim. Tudo bem que eu tive de dar uma aliviada ultimamente, mas ela que pense que pode sair da linha...

– Tá, só tem uma falha nesse seu raciocínio aí: se a Lena quisesse, nunca que a Carina iria dar um fora nela.

– Daria sim. Daria um fora por mim. Ela se ressente por ter me escondido por tanto tempo a verdade sobre a Lena.

– Não consigo pensar num ressentimento grande o suficiente para fazer a Carina dispensar uma foda.

– Ela não dispensou completamente, oras. Ela tinha a Kara.

Winn ficou pensando por alguns instantes.

– E se não foi nada disso? E se a Le realmente se arrependeu de ter mentido pra você?

– Desde quando a Lena é mulher de se arrepender de alguma coisa, Winn?

– Não sei, mas ela está muito diferente de uns tempos pra cá. Bem, pra começo de conversa, ela está namorando.

– É, eu sei. Mas ninguém muda tanto assim. Nós conhecemos a Lena há anos, Winn. Não podemos esquecer de que se deve ter sempre os dois pés atrás com ela.

– Nesse ponto você tem razão. Eu só acho que, mais até do que ela, você mudou.

– Eu? – estranhou Andrea.

– Se você fosse ciumenta assim com a Stacy, por exemplo, o namoro não teria durado dois dias.

– Exatamente por isso que resolvi mudar, oras. Eu já aguentei tudo o que tinha de aguentar com aquela lá. Depois, consegui a façanha de ser traída pela garota mais certinha do universo. Dessa vez, eu não vou vacilar.

– Parece até que o seu objetivo de vida mudou de “ser feliz” para “nunca mais ser chifrada”.

A garota suspirou. Pelo menos em parte, Winn estava certo.

– Depois que eu colocar a Lena nos eixos, poderei descansar.

– Está bem. Conte comigo – ele piscou o olho.

Andrea sorriu, feliz, pensando como era bom estar com Winn de novo. Apesar da aproximação de Ellie, o rapaz ainda era seu confidente, ainda era a pessoa em quem ela confiava para contar as coisas mais sérias e para dividir as anedotas mais bobas, sem medo de se expor.

– Eu vou colocar uma roupa mais confortável e já volto, ok?

– Claro.

Andrea ainda estava atenta ao deslocamento de Winn, que andou até a varanda, quando abriu a porta do quarto. Por isso, ao se dar conta que eles não estavam sozinhos, o susto foi tão grande que ela ficou paralisada.

Lena estava sentada sobre a cama, com as costas apoiadas na cabeceira, calmamente fumando um cigarro. O seu olhar, que diretamente incidia sobre a namorada, trazia tons que Andrea jamais havia observado em alguém.

Até que seu cigarro acabasse e a bituca fosse apagada no cinzeiro, Lena não disse absolutamente nada. E durante esse período, Andrea não conseguiu piscar nem respirar.

Vagarosamente, Lena se levantou. E enquanto deixava o quarto, disse:

Amanhã cedo, quando eu voltar para a minha casa, não quero ver sequer um vestígio da sua passagem por aqui.

E assim, depois da frase seca, a advogada deixou o apartamento.



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