Desvendando o passado

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Mike convidou os amigos mais próximos para uma pequena reunião em seu apartamento, em comemoração ao seu aniversário, no final de abril. Andrea chegara a pensar em não ir, porque sabia que Lena estaria lá, mas como não conseguiu formular uma boa desculpa para justificar sua ausência -- sobretudo alguma que convencesse Kara, acabou aparecendo.

-- Que bom que vieram, meninas -- cumprimentou Winn, que recebia os convidados enquanto Mike terminava de se arrumar.

-- Cadê o Mike? -- quis saber Kara.

-- Ah, você sabe, experimentando camisas. Fiquem à vontade, acho que vocês conhecem todo mundo de vista.
"Todo mundo" era a irmã mais velha de Mike, duas colegas de faculdade, um amigo de vista que era namorado de uma delas e um vizinho de prédio do aniversariante. Quando Mike finalmente apareceu, recebeu os cumprimentos de todos e animou a festa.

-- Acho que ela não vai vir, né? -- disse Winn, sentando-se entre Andrea e Kara.

-- O doutor Martelli deu outra prensa nela hoje -- comentou Kara.

-- Por quê? -- quis saber Winn.

-- Bom... Eu não conversei com ela, mas ouvi fofocas nos corredores da firma. Ouvi dizer que ela recusou o caso até o fim. O caso Simmons, eu quero dizer.

-- Lena recusando um caso desses? -- disse Andrea.

-- Isso aí. Jim me disse que ouviu uma discussão feia entre eles, e que a Lena pediu demissão.

-- Hoje?

-- Não, quando o caso veio pra nós.

-- É ela quem está no caso, não é?

-- Uhum. E não comenta palavra dele comigo. Só me pediu para ler os depoimentos e ver se achava algum furo. Disse que "curiosa como eu sou, se tivesse algo, eu acharia".
-- E como eram os depoimentos?

-- Segredo profissional -- disse ela.

-- Ah, só o que nos faltava, uma Lena 2 -- disse Mike, que pegara a conversa no meio.

-- Nada.

-- Por que ela pediria demissão da Martelli? -- Andrea estava intrigada. -- Ela vive aquele trabalho, respira aquela firma.

-- A prensa dele hoje foi porque ela não entra em acordo com a cliente. Te falei dela, não falei, meu bem?

-- A tal socialite que matou o marido?

-- Uhum. Helena Bertinelli Simmons. Que nome, hein? Parece uma princesa.

-- Helena? -- recapitulou Winn.

-- Sim.

Winslow e Andrea trocaram um olhar cúmplice e exclamaram ao mesmo tempo:
-- Helena!!

-- Quem? -- quis saber Mike.

-- Eu te falei, amor -- explicou Winn. -- Aquele nome que a Le diz quando está dormindo. O que foi mesmo que ela disse? Um caso que perdeu e nunca mais se perdoou.

-- Caso?

-- Segundo ela, trabalho. Mas se essa Helena é de NY, como a Lena, aliás, não pode ser trabalho. Ela se formou aqui em National City.

-- E disse que nunca mais a viu -- completou Andrea.

-- Danadinha! A Le tem uma história!!!

-- Claro que tem -- disse Kara, sem emoção.

-- Como assim?
-- Ela nunca contou? -- ela esperou pela confirmação dos outros, a qual já esperava. -- Ué, foi há muito tempo atrás essa conversa...

-- O que ela disse? -- quis saber Andrea, interessadíssima.

-- Sei lá, eu ainda estava com a Bia... -- ela corou ligeiramente por falar o nome da ex na presença de Andrea. -- Disse que queria saber como era ficar com alguém que você ama e ela me explicou.

-- E disso você concluiu que ela já tinha gostado de alguém -- disse Mike. -- Sensato. E aí interrogou, como adora fazer, até ela contar tudo.

-- Hei!

-- Interrogou ou não? -- quis saber Winslow.

-- Tá, eu fiz umas perguntas.

-- E o que foi que ela falou??? -- quis saber Andrea.

-- Ui, interessada? -- Kara deixou transparecer o seu ciúme.

-- Como todo mundo nesse sofá, se quer saber.

-- Sei... -- Kara fez cara de poucos amigos.

-- Fala de uma vez, Ka -- suplicou Winn.

-- Disse que ela se casou com um homem e ela entendeu, aceitou. A ex teve um filho com ele e tudo. E nunca mais se viram. Disse que foi um acordo.

-- Bem a cara dela -- comentou Andrea.

-- Bom, a tal Helena era casada -- disse Winn. -- E tem um filho.

-- Mas matou o marido -- disse Kara. -- Ops, quer dizer, é acusada de ter matado o marido.

-- Então é por isso que a Lena não quer o caso. A cliente é a ex misteriosa dela.

-- Será que é mesmo? -- perguntou Mike. -- Bem, se for é perfeito, porque ela está viúva agora, vai herdar uma fortuna e a Le vai tirá-la da cadeia.

Andrea apenas pensou sobre o assunto, silenciosamente.
-- Eu acho que não -- disse Kara. -- Olha, eu não deveria estar falando essas coisas, mas confio em vocês, são a minha família. As brigas da Lena com o doutor Martelli são porque ela se recusa a alegar inocência da tal Helena. Quer que ela seja presa.

-- Vingança...

-- Pra ser sincera... -- Kara suspirou. -- Li o processo, ainda não sou especialista, mas não há qualquer chance de livrar ela da cadeia. Nem mesmo pra Lena. O que ela vai tentar é um acordo com confissão. Mas que isso não saia daqui.

-- Não vai sair, não se preocupe -- disse Mike.

-- E nem comentem com a Lena, ela me comeria viva.
Riram.

-- Hei, vocês entenderam o que eu quis dizer!







* * *

Andrea colocou os fones de ouvido e sentou-se no banco do ônibus. Tinha passado a tarde toda dentro de uma biblioteca, reformulando seu projeto de mestrado depois de algumas leituras. Seus amigos tinham razão, ela tinha um diploma, um currículo extenso e era fluente em quatro línguas, duas delas desde a adolescência. Andrea tinha tudo para ir longe. Rui de si mesma. Havia feito ballet, cursos de línguas, piano, natação. Quase nunca lembrava da infância, mas naquele dia, talvez por mais uma vez não se sentir muito bem, começou a lembrar de coisas dolorosas demais.
Com frequência zombava da teimosia de sua namorada, mas ela era mesma uma pessoa de gênio forte, quando o assunto era o próprio destino. Pegara sua mãe em flagrante aos onze anos, um caso extra-conjugal que acabou com o casamento de seus pais. Apaixonada pelo amante, sua mãe se mudou com ele para a Europa e Andrea terminou sua educação ao lado do pai. Todos reconstruíram suas vidas depois daquilo, incluindo seu pai, que se casara novamente e tivera um filho.
Andrea sabia, por e-mails, que sua mãe tivera outra menina, mas ela não conhecia a irmã por mais que um nome e uma foto de bebê. Saiu da casa do pai quando entrou na faculdade e o via muito pouco, apesar de ele a sustentar através de uma mesada.
Às vezes lhe ocorria procurá-lo, contar detalhes de sua vida, quem sabe até mencionar que era lésbica, mas acabavam nunca passando de conversas amenas, almoços ao lado de colegas de trabalho dele, quando ele marcava. E marcava cada vez menos, ano após ano. Um mês antes de Stacy terminar o namoro pela primeira vez, Andrea viajara com o pai, o irmão e a madrasta por duas semanas, mas sentiu-se tão estranha naquela família que percebeu que não fazia mais parte dela.
Então se falavam por mensagens, coisas triviais, mensagens em massa com piadas ou conteúdo religioso.
Uma psicóloga lhe dissera, uma vez, que não era apesar daquilo, mas principalmente por causa daquilo que Andrea acreditava tanto em amor. Acreditava tanto que havia uma pessoa predestinada para ela e que assim que se encontrassem, seriam felizes para sempre.

-- Arrumando a casa nova? -- disse, assim que Kara abriu a porta.

-- Uhum -- Kara a puxou para dentro e imediatamente roubou o fôlego de Andrea com um beijo demorado. -- Pensei em você o dia todo, meu bem!

-- Também estava com saudade de você -- disse ela, mesmo sabendo que haviam acordado juntas. -- Como foi a aula? E o estágio?

-- Tudo bem.

-- "Tudo bem"? Não vai começar a contar tudo?

-- Depois, quem sabe -- Kara a puxou pela mão, para que se sentassem no sofá. -- Mas não aconteceu nada interessante, de qualquer forma. Pelo menos não mais interessante do que ouvir você me contar o que andou fazendo.

-- Eu fui à biblioteca, eu te falei.

-- Falou. Mas e então... O que leu por lá?

Andrea tomou fôlego.

-- "As Relações Internacionais entre USA e Canadá no século XXI". Infinita chatice, para você.

-- Claro que não. De que fala? -- ela repensou. -- Bom, o título parece esclarecedor, mas o que mais?

-- Basicamente, comparações entre o modelo de relações exteriores do governo nos últimos 20 anos.

-- Por que todo mundo fica comparando? A aula de Economia Política só tem isso.

-- Eu disse, infinita chatice -- Andrea sorriu.

-- Tá, mas é o que você gosta. E aí? Vai aproveitar alguma coisa para o mestrado?

-- Já havia citado a obra na monografia. Mas estou lendo mais a fundo agora. Na época que escrevi a monografia eu só conseguia pensar na St... -- Andrea parou de falar e apertou os olhos.

Kara acariciou seu rosto e sorriu docemente.
-- Na Stacy -- bateu três vezes na madeira -- Pode dizer, meu bem. Eu sei que é passado, não fico zangada.

-- Desculpe.
-- Você não tem do que se desculpar -- Kara lhe roubou um beijo singelo nos lábios. -- Que mais você leu?

-- Cartas e declarações públicas. Vou usar algumas como fontes, mas preciso das originais e seus anexos para escrever a dissertação.

-- E as originais de lá estão, provavelmente, no Canadá.

-- Isso aí.

-- Quando tem seleção para a bolsa? -- Kara se interessou e se esforçou para não parecer chateada com uma possível viagem.

-- Então... -- Andrea suspirou. -- Eu pensei em... Pensei em ir antes de apresentar o novo projeto, para as fontes e anexos já estarem nele. O projeto ficaria redondinho!
Kara mordeu os lábios.

-- Você combinou com seu orientador de apresentar o novo projeto em junho...

-- Uhum.

-- Sei.

-- Aí eu pensei em pedir a viagem de presente para o meu pai.
Kara estreitou os olhos.

-- Acha que ele concordaria?

-- Sim. Tenho certeza. Ele estava em Buenos Aires na formatura e disse que me deve um presente por não ter podido vir.

-- Você disse que ele é empresário, né?

-- Ele tem o negócio dele, sim. Vive bem.

A mais nova achou que não era o momento apropriado para dizer que Andrea deveria se sentir grata por não ter rompido com seu pai e vê-lo mais vezes, deixá-lo participar de sua vida como ela própria não podia deixar a sua família participar de suas conquistas.

-- Hum.

-- Eu precisaria de algo entre três semanas e um mês para pesquisar. Tenho amigos que moram no Canadá e certamente me ajudariam quando eu fosse para lá. Sei que é meio súbito, mas... Logo logo eu estou de volta.

-- Eu sei -- Kara sorriu. -- Agora fica um minutinho aí que eu já volto.

-- Onde você vai?

-- Am... Ao banheiro.

-- Espera, você nem me mostrou como ficou o quarto depois da arrumação, eu quero ver tudo e-

-- Fica aí. Não ouse! -- ela fechou a porta do quarto e, conforme prometera, saiu dele depois de um minuto ou no máximo um pouco mais que isso.

-- Está tudo bem?

-- Vem cá -- pediu, corada, mordendo os lábios.

Andrea entrou no quarto e viu que as luzes estavam apagadas. Kara espalhara velas em volta da cama e as acendera, provavelmente naquele minuto que pedira para a namorada esperar. Havia também uma garrafa de champagne e duas taças.

-- Ka?

Kara fechou a porta devagar e abraçou a namorada pelas costas.

-- Nossa primeira noite na minha casa nova, e dessa vez não são meus pais que pagam o aluguel. É importante pra mim -- admitiu.

-- Claro que sim.

-- Quero que seja especial pra você também -- disse Kara.

Andrea sorriu, emocionada. Kara a encantava cada vez mais e ela jamais tinha imaginado uma surpresa como aquela.

-- Ka, eu... Eu...

-- Shhh -- Kara a beijou nos lábios e começou a desabotoar sua calça jeans. -- Não diz agora. -- beijou o pescoço de Andrea, provocando-lhe um arrepio.

Ela obedeceu. Beijou a namorada intensamente, tirou sua roupa, deixou que ela tirasse a sua, deixou seu corpo agir numa espécie de "piloto automático". Aquilo era mesmo importante para Kara, ter a própria casa, e Andrea sabia que não tinha o direito de estragar aquele momento comentando que precisava de um tempo.
Um tempo que ela alegaria ser para repensar o namoro, mas que Andrea sabia ser por outro motivo. Depois do que descobrira na festa de Mike, ela tinha colocado na cabeça que a insistente recusa de Lena em ceder tinha algo a ver com a cliente misteriosa. Uma coisa ela sabia desde o começo: se quisesse mesmo conquistar Lena, teria de dar um fim no seu namoro com Kara, mas essa parecia ser uma tarefa tão difícil quanto amolecer o coração de pedra da advogada. Andrea acabava sempre lembrando que Kara não tinha mais ninguém no mundo além dela, e se compadecia, recuando.
Era um comportamento covarde, ela sabia. Mas pelo menos teria o tempo da dita viagem para o Canadá para pensar bem no que fazer e em como fazer.








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