Subentendido I

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Kara entrou em casa procurando fazer o mínimo de barulho. Percorrendo a sala e a cozinha, certificou-se de que Lena ainda não havia acordado, e então apanhou o bilhete que deixara para ela preso aos ímãs da geladeira.

Tendo saído da cama em cima da hora, a garota acabou indo para a faculdade com o carro da advogada, já prevendo que Lena não usaria o veículo até que ela conseguisse voltar, no horário do almoço. Procurando evitar ter de dar explicações, Kara amassou o bilhete e jogou fora. 

Depois de preparar uma bandeja caprichada, Kara finalmente entrou no quarto. Lena continuava adormecida, na mesma posição que estava da última vez que Kara tinha ido checar, antes de partir, de manhã.

Pousando a bandeja sobre o criado mudo, Kara se sentou sobre a borda livre da cama e acabou se reservando alguns instantes de contemplação, antes de finalmente despertar Lena.

Com afagos singelos que variavam entre o rosto e a nuca, Kara aguardou pacientemente até que Lena voltasse à consciência. Ela sabia que aquilo não seria nada fácil, mas depois do que acontecera, acordar Lena de supetão não fazia o menor sentido.

– Hei... – chamou, assim que percebeu algum resultado.

Antes de abri-los, Lena ainda apertou os olhos. Nitidamente, a ressaca seria proporcional ao abuso insano cometido.

– Ka?

– Uhum... – confirmou a garota. – Ainda não foi dessa vez que você partiu para uma melhor.

Lena finalmente abriu os olhos, encarando o sorriso brando de Kara.

– Bom dia! – saudou com uma expressão aberta, que lhe custou uma pontada dolorida na cabeça, fazendo o sorriso desaparecer por um segundo. – Ai!

Kara riu, voltando a lhe afagar a nuca.

– Calma, eu vim preparada.

Esticando-se, Kara apanhou dois comprimidos que deixara no canto da bandeja, e também um copo de água trazido para acompanhá-los.

– Tenta sentar e tomar isso aqui. Vai ajudar – prometeu a garota.

Não sem dificuldade, Lena fez conforme o indicado. Talvez por ainda estar zonza, e também por ter acabado de acordar, sua mente não parecia perfeitamente capaz de processar os acontecimentos. Seus olhos encaravam os de Kara como se buscassem uma pista, um sinal mais claro do que havia acontecido, mas não obtinham sucesso.

Kara estava cada vez mais afiada em imitar o olhar neutro que Lena sustentava quando precisava esconder suas emoções.

– Que horas são? – perguntou a advogada, depois de engolir o remédio.

– Meio dia – Kara informou. – Olha, eu sei que provavelmente você planejava passar o dia todo nessa cama, e até entendo, mas, infelizmente...

Lena estreitou os olhos. Kara continuou:

– Não quero que você fique preocupada, está bem? – ressalvou Kara, antes de tudo. – Mas eu tenho uma audiência daqui a pouco, e o George não poderá me acompanhar.

Depois de uma careta nem um pouco feliz, Lena respondeu:

– Diga que não é nada complicado...

– Claro que não – assegurou Kara. – Já tenho tudo esquematizado, só preciso que alguém me acompanhe. O caso já está comigo desde o começo.

– Hum, menos mal.

– Então... Eu sugiro que você coma alguma coisa – Kara apanhou a bandeja.

– Ah, não, Ka...

– Eu sei que você está enjoada, mas precisa se alimentar.

Lena bufou.

– Não vai parar nada no meu estômago agora.

– Você tomou um remédio forte – explicou a garota. – Vai ser por bem ou vai ser por mal. O que você prefere?

Encarando-a com um sorriso debochado, Lena respondeu:

– Isso pode ser interessante...

Kara virou os olhos, apanhou uma torrada e a empurrou contra os lábios insistentemente cerrados de Lena.

– Anda, teimosa!

– Ah, Kara...

– Deixa de ser criança, Lena! – ralhou a garota.

Depois de alguma resistência, a advogada cedeu. Kara se levantou em seguida, anunciou que prepararia um lanche rápido para si e organizaria suas coisas para a audiência. Lena engoliu uma torrada e meia xícara de café e depois disso foi pro banho.

Sentindo-se um pouco menos debilitada, notou um crescente nervosismo tomando conta de si cada vez que pensava no que havia ocorrido ali mesmo, na última madrugada.

Se estava totalmente fora dos seus planos, pelo menos aquela audiência de última hora tinha servido para alguma coisa. Discutir um caso manteria as duas ocupadas ao menos pelas primeiras horas, porque pensando friamente, Lena concluiu que não saberia o que dizer.

Depois de pronta, a advogada apanhou sua bolsa e encontrou Kara na cozinha.

– Estamos atrasadas? – questionou.

– Ainda não, mas quase! – Kara foi na frente, rumo à garagem.

Lena a seguiu, mas não muito de perto. Ocupada com as trancas da porta, usou isso de desculpa, tentando não pensar que Kara e ela ficariam presas dentro do mesmo carro por mais de meia hora.

“Só falta não ter nada interessante nesse caso pra discutir...” pensou a advogada.

Aproximando-se do carro, Lena sugeriu:

– Ka, você se importa de dirigir? Digamos que haja uma blitz a uma hora dessas, é bem capaz de acharem uma porcentagem de sangue no meio do meu álcool...

Apesar do tema sério, Kara acabou rindo.

– Engraçadinha, você.

Enquanto deixavam a garagem, Lena apanhou a pasta do caso, e fingindo estar completamente detida nela, foi deixando o tempo passar. Kara fez um comentário bobo e aleatório sobre o trânsito, e Lena, alguns minutos depois, disfarçou perguntando como havia sido a aula da garota.

Somente quando elas já se aproximavam do fórum, Lena percebeu que havia deixado outra coisa muito importante passar:

– Você disse pra eu não ficar preocupada, e depois informou que o George não poderia vir na audiência... – retomou.

Kara apertou os olhos, ficando visivelmente tensa.

– Droga, por um momento achei que tivesse escapado...

– Que houve? – Lena foi logo tomada pela mesma tensão, ainda que desconhecesse o motivo.

– Ele passou mal... Mas não foi nada grave, ok? A Lu me avisou que ele passou a noite em observação, mas já está em casa.

Lena demorou a reagir.

– Droga... – disse, inclinando a cabeça para trás e encarando o teto do carro.

– Como eu disse no começo, não é pra você se preocupar com isso agora, está bem?

– Como se eu tivesse escolha, né? Preciso ligar para a Mary Alice...

– Eu já fiz isso, Lena – explicou Kara. – Ela certificou que ele está bem, e desejou melhoras pra você.

– Pra mim?

– Eu disse que você não estava nada confortável com a situação.

– Kara...

– Não começa, Lena – Kara logo cortou. – Eu cansei de ver você se machucando por conta dessa sua cabeça dura. Acho que podemos parar de fingir que a pirralha da história sou eu, quando você tem atitudes dignas de uma criança mimada.

Lena fora pega completamente de surpresa pela reprimenda.

– Não é meio cedo pra esse tipo de conversa entre a gente? – respondeu num reflexo.

Kara respondeu com um olhar intrigado:

– Cedo? Como assim “cedo”?

Lena se arrependeu da frase na mesma hora, e tratou de consertar:

– Esquece. Eu vou pensar sobre isso, está bem?

– Acho bom – disse Kara, enquanto estacionava.

Durante a audiência, Lena não teve muito com que se preocupar a não ser o próprio estômago, que insistia em dar voltas tentando expulsar a mísera torrada e o pouco do café.

Kara também não teve grande trabalho. Foi exatamente como ela explicara: Lena só precisava estar presente por uma questão de formalidade. Encerrada a sessão, a advogada ainda teve de forçar um sorriso simpático ao ser cumprimentada pelo promotor.

Na saída, percebeu que Kara esperava por algum comentário, com seu olhar vivo, seus gestos medidos, a personificação de uma timidez que nunca seria disfarçada com sucesso. Pelo menos não diante de Lena.

Pela primeira vez esquecendo do enjôo, a advogada fingiu um tom de casualidade e passou a comentar qualquer coisa que não fosse o desempenho de Kara diante da tarefa profissional mais séria que ela já tinha assumido desde que ingressara no Direito.

Habilmente, Lena conseguiu enrolar a garota até que elas estivessem de volta ao escritório. Lá, ambas ocupadas, acabaram se separando, mas Lena mal deu conta de ouvir o progresso relatado pelos três assistentes. Definitivamente, ela estava sem condições de trabalhar naquele dia.

Passando pela sala de Kara, avisou:

– Eu já vou indo. Você se importa de levar o carro?

Kara tirou os olhos do computador.

– Claro que não. Você tá bem?

– O suficiente pra chegar viva em casa – respondeu Lena.

Mesmo já tendo fechado a porta, Lena conseguiu ouvir quando Marcus provocou Kara com um riso debochado. Em pleno hall, sozinha, ela própria acabou rindo, o que logo se revelou uma péssima ideia, já que sua cabeça reclamou, mais uma vez.

Voltando pra casa de táxi, Lena foi traçando seus planos, esperando que a ressaca passasse de uma vez. Não pelo desconforto em si, mas porque mais do que nunca, ela ansiava estar bem, e não ter de se preocupar com mais nada que não fosse... Kara.




* * *




Andrea estava cabisbaixa, subindo os degraus do prédio onde morava sem disfarçar o cansaço de um dia inteiro de estudos e reuniões. Surpreendida pelo súbito aparecimento de Ellie, que como sempre pareceu se materializar na sua frente, quase derrubou os livros que trazia no colo.

– Mas que mania de me assustar, garota! – ralhou Andrea.

– Eu, hein! Achei que você já estivesse acostumada!

Andrea deu de ombros e voltou a cumprir os degraus com um pouco mais de ânimo que antes.

– Espera! – interceptou Ellie.

– Que foi?

– Você não pode subir.

“Lá vem mais uma maluquice” pensou Andrea, antes de perguntar:

– Que foi agora?

– É o Ed.

– Ele se trancou no banheiro de novo? Porque dessa vez eu juro que arrebento aquela porta e...

– Não, nada disso. Nosso coleguinha de apê finalmente se deu bem – contou Ellie, com um enorme sorriso.

– Como assim?

– Pela primeira vez em quinhentos anos, ele conseguiu trazer uma garota pra casa... Não podemos atrapalhar...

Respirando fundo, Andrea até pensou na ideia, mas como estava muito cansada, não conseguiu fazer sua porção altruísta falar mais alto.

– De qualquer forma, eu preciso ler umas coisas. Vou ficar trancada no meu quarto – prometeu.

– And, não! Poxa vida, coitadinho do Ed, ele nunca vai desencalhar se a gente não der uma força...

– Ellie, em primeiro lugar, ele não é uma mocinha do século dezoito pra estar querendo “desencalhar”, e em segundo lugar, eu já disse que não vou atrapalhar.

– Mas a menina pode desistir, ou ficar com vergonha ao saber que tem mais gente no apartamento... Faz um esforço, vai?

– Supondo que eu me sensibilize com a situação do Ed, o que é que eu poderia fazer? Passar a noite toda sentada nessa escada? Sem chance, Ellie, eu tô super cansada, e como já disse...

– Está cheia de coisas pra ler, como sempre! – completou a outra, num tom cansado. – Poxa vida, And, ninguém pode ser feliz lendo tanto assim!

Andrea não estava com a menor paciência para ter aquela conversa de novo. Ela estava na fase mais “nerd” da vida, e Ellie era uma relapsa de carteirinha. Exatamente como os exemplares mais genuínos do gênero, sua amiga tinha orgulho disso.

– Ah, And, faz um esforço, vai? Vamos dar uma volta, quem sabe eu não consigo te animar?

– Ellie...

– E não venha me dizer que você já está animada, porque eu sei muito bem que dia é hoje e posso imaginar como está a sua cabeça.

– Como assim?

– Não vai me dizer que você não foi na sessão de análise?

Seguindo o conselho dos amigos, Andrea tinha procurado ajuda. Apesar de resistente no começo, ela mesma já tinha chegado à conclusão que seria mais fácil superar suas decepções e todas as mudanças que aconteceram na sua vida sob a orientação de alguém diplomado pra isso. Além de tudo, ela já vinha se sentindo mal por alugar o ombro dos amigos.

– Eu fui, sim – respondeu ela. – Mas nunca imaginei que logo você fosse lembrar disso. Se bobear, você esquece até de ir ao banheiro, Ellie.

– Aff, até parece... – reclamou ela. – Mas e aí, como foi?

Andrea olhou para os lados.

– Você não espera que eu responda isso aqui, espera?

– Como se alguém fosse se importar... – Ellie fez um gesto vago.
 
– Onde você vai?

– Largar a minha mochila pelo menos. Posso?

– Não!

– Ellie...

– Vai atrapalhar o Ed...

– Você não quer que eu saia carregada de livros por aí, quer?

Ellie ficou analisando a questão por alguns segundos.

– Tudo bem, deixa que eu cuido disso.

Apanhando a mochila e os livros, Ellie correu até a porta, abriu-a rapidamente, atirou os materiais de Andrea pra dentro, de qualquer jeito, e fechou a porta de novo.

– Vem! – puxou Andrea pelo braço, escada abaixo.

– Sua louca! Isso sim vai deixar a garota apavorada!

– Não vai nada... Ela nem deve ter visto.

– Tudo bem, só que agora eu fiquei sem dinheiro e sem documentos. Tava tudo na mochila...

– Não tem problema, eu estou com a minha carteira. Tem dinheiro e documentos de emergência. Venha!

– Falsos, eu presumo.

– Que espécie de pretensa espiã usaria apenas documentos verdadeiros?

Andrea acabou rindo. As esquisitices de Ellie eram tantas, que sua amiga estava conseguindo se acostumar a nunca esperar o óbvio dela. Juntas, foram andando até um barzinho próximo, onde já haviam se encontrado algumas vezes.

– Então, como foi? – quis saber Ellie.

Acertadamente, Andrea supôs que ela perguntara sobre a sessão de análise. Todas as semanas, ela acabava reproduzindo toda ou parte da conversa para a amiga. Na maioria das vezes, Ellie fazia piada, mas de vez em quando conseguia expressar algum comentário construtivo.

– Hoje foi um dia bem freudiano. Falei da minha mãe umas quinhentas vezes – respondeu Andrea, depois de um suspiro.

Ellie ficou bastante intrigada.

– Desculpe se, pra variar, eu estiver bancando a esquecida, mas... Mãe? Desde quando você tem mãe?

– Você não acha que eu vim com a cegonha, acha?

A garota riu.

– Menos, né? Eu sei que todo mundo tem mãe. Ou teve... Mas nunca te ouvi falar da sua.

Andrea torceu os lábios.

– Não foi esquecimento seu. Eu não falo mesmo.

– E hoje resolveu desembuchar tudo?

– Isso aí.

– E vai ter resumo especial pra sua melhor amiga que pagará a conta? – subornou Ellie.

– Boba! Mas fique sabendo que vai ser um resumo beeeem resumido, porque sinceramente, esse assunto me dá sono. A não ser que você tenha desistido de “desencalhar” o Ed.

– De modo algum. Seja dinâmica, então – sorriu.

– Eu não a vejo há mais de uma década. Ela se separou do meu pai e deixou o país, pra viver com outro cara. Pouco tempo depois, tiveram uma filha.

– Então você tem uma irmã!!! Jurava que você era filha única.

Andrea balançou a cabeça, derrotada.

– Primeiro: meia-irmã. E sequer a conheço pessoalmente. E, segundo, já falei mil vezes do meu irmãozinho pra você.

Ellie baixou a cabeça, constrangida.

– Verdade. É que você parece filha única.

– Bom, dos meus pais enquanto casal, sou filha única mesmo. Serve?

– Do jeito que anda a configuração familiar moderna, você não é nenhuma raridade... Lamento. Mas... Por que não vê a sua mãe?

– Por causa da parte onde eu contei que ela saiu do país?

– Sim, porque pra você, uma viagem internacional é o fim do mundo...

– Tá bom... ela traiu meu pai – contou And. – E dispenso sua opinião sobre a relevância do motivo, está bem? Pra mim isso foi terrível e causou o fim da minha família, e papo encerrado.

– Tudo bem – assegurou Ellie. – A sua irmã é lésbica também?

– Não sei...

– Ela é bonita?

– Só vi por foto, uma única vez. E tinha cara de joelho, como qualquer bebê.

– Tinha os seus olhos? – insistiu Ellie.

Andrea a encarou com seriedade.

– Por que quer tanto saber?

– Se ela for menos complicada que você, porém fisicamente parecida, eu adoraria investir... – brincou Ellie.

– Sua doida, ela é uma criança!!

Ellie gargalhou.

– Você acha que ela vai ficar pra sempre como você viu na foto?

– Não, Ellie, eu só acho que se passou tempo de menos desde então, pra você planejar “investir” sem sofrer um processo criminal!

– Tá bom, desculpa. Achei que ela fosse mais velha.

– Pois não é.

– Tá, mas e se eu esperar, ela vai ficar parecida com você?

– Mas que insistência! Endoidou de vez?

– Que fofo, tá com ciuminho da mana?

– Para, sua ridícula. Eu não sei nem o nome dela. Quero mais que se exploda!

– Não quer não...

– Tudo bem, Ellie, você conseguiu acabar com o meu humor. Peça a conta, eu vou pra casa, com ou sem noitada do Ed.

– Hei, espera aí. Também não é pra tanto. Desculpa. Juro que não toco mais nesse assunto. Hoje...

– Como se eu pudesse acreditar quando você promete uma coisa assim.

– Dessa vez eu juro mesmo. Escolha outro assunto, vamos esquecer esse.

Andrea ainda estava pensando sobre o quê as duas poderiam conversar, quando seus olhos, que vagavam pelo interior do bar, encontraram um rosto conhecido.

– Merda... – deixou escapar.

– Eu hein? Mudar de assunto é uma coisa, mas...

– Não, sua anta. Não olha agora, mas Hanna acabou de entrar no bar.

Ellie se virou na mesma hora, nem um pouco discreta. Andrea deixou seu corpo resvalar na cadeira, tentando se esconder, mas foi impossível. Por muito pouco, Hanna não a viu.

– Que que ela tá fazendo aqui? – perguntou Ellie.

– E eu é que sei?

– Quem dormiu com ela foi você – acusou Ellie.

– Sim, e por isso eu sei tudo da vida dela, inclusive algo que na época era futuro distante. Elementar!

– And, você tá mais grossa que o normal, sabia? – cobrou Ellie.

– Seguinte, me ajuda a sumir primeiro e me xinga depois.

– Sumir?

– Você não quer ser agente secreta? Esse tipo de gente não tem sempre um plano B, uma saída de emergência, uma rota de fuga?

– Sim, tem... Mas eu ainda não fiz o meu treinamento...

– Que ótimo... Uma ideia, pelo menos? Rápido, Ellie!

– Ela tá vindo pra cá?

Ellie se levantou enquanto Andrea respondia:

– Sim.

– Quando ela estiver olhando pra cá, você levanta – orientou Ellie.

Como não havia tempo pra questionar, Andrea obedeceu. Discretamente, ficou observando a aproximação de Hanna, que provavelmente a tinha reconhecido.

– Ela tá olhando? – questionou Ellie, com certa urgência.

– Tá... – Andrea se levantou se súbito.

– Agora me beija.

– O q-

Antes que Andrea tivesse tempo de protestar, Ellie cobriu seus lábios com os dela, num beijo intenso. Zonza, Andrea teve de se amparar no corpo dela, enlaçando-o pela cintura. E quando estava quase entendendo o que acontecia, Andrea sentiu Ellie se afastar, do mesmo modo inesperado como a tomara pra si.

Assim que olhou de novo, Andrea viu Hanna dando meia volta e procurando uma mesa distante. Ao seu redor, algumas pessoas tentavam disfarçar a surpresa da cena, e em poucos segundos, tudo pareceu voltar ao normal, exceto para a própria Andrea, cujas mãos continuavam pousadas no corpo de Ellie.

– Agora a gente paga a conta e sai de mãos dadas... – disse a garota. – E deixamos pra rir do lado de fora – ainda avisou.

Em pânico, Andrea constatou que não sentia a menor vontade de rir. Rapidamente, ela encerrou o abraço, temendo que Ellie pudesse perceber o ligeiro tremor que tomara conta dela.

Depois de passarem pela porta, Ellie imediatamente soltou a mão da amiga, afastando-se dois passos e começando, finalmente, a gargalhar.

– Deu pra ver a cara dela? – quis saber.

Andrea disfarçou forçando um riso.

– Não, mas ela deu meia volta rapidinho...

– Isso sempre dá certo! – comemorou Ellie, ainda rindo.

– Quantas vezes você já fez isso, garota?

– Ah, sei lá... – ela fez um gesto qualquer. – E agora? Tá muito cansada? Porque eu conheço outro bar aqui perto, é até mais barato que esse.

Andrea ainda se sentia meio fora do ar. Por mais que tentasse evitar, ficava voltando às sensações do beijo. Provavelmente por ter sido tão rápido, foi como se faltasse alguma coisa... Algo que a garota não sabia dizer o que era.

O que ela mais temia era que as coisas mudassem entre Ellie e ela, depois daquilo. Mas Ellie parecia tão ocupada em rir da reação de Hanna, que claramente não tinha sentido a mesma coisa. Era apenas um bom plano para despistar uma companhia indesejada. E havia outro agravante: Ellie tinha deixado claro que não era a primeira vez que fazia aquilo.

– And? – insistiu ela. – Você tá bem? Mudou de ideia? Quer voltar lá e falar com a Hanna?

– Aaaam... Sim, não e, definitivamente, não.

– Então vem comigo!

Outra vez, Ellie praticamente arrastou a amiga consigo. O bom de ela ser bastante desligada era que Andrea poderia se reservar às suas divagações sem precisar pedir licença. Ellie falava pelas duas, e ainda sobrava assunto.

O segundo bar era muito mais a cara dela. Música alta, conversas inflamadas e bebidas baratas. Assim que elas encontraram uma mesa, depois de tomarem dois drinks no balcão, uma banda iniciante subiu ao pequeno palco, e algumas pessoas se arriscaram a ficar em pé diante deles.

Em meia hora, Ellie já tinha cumprimentado umas cinquenta pessoas.

– Como você é popular! – observou Andrea, num tom de indignação.

– Nada... É que a minha banda tocava aqui também.

Andrea a encarou com grande surpresa.

– Você tinha uma banda?

– Ah, mais ou menos. Eu tinha uma namorada baterista, aí a vocalista ficou doente...

– E você era vocalista!?

– Não, né! Mas a baixista teve que virar vocalista e eu virei baixista – contou a garota.

– Desde quando você toca baixo?

– Eu não toco, eles deixavam essa parte gravada e eu fazia figuração.

Andrea virou os olhos, rindo.

– E eu ainda pergunto...

Ellie deu de ombros, cumprimentou mais alguém que vinha passando, pediu mais uma bebida e depois perguntou:

– Tá muito cansada? Acho que o Ed já se resolveu... Se não tiver conseguido até agora, não vai ser dessa vez.

– Ué, já quer ir embora? – estranhou Andrea.

– Não realmente. Mas achei que você quisesse.

Andrea pensou a respeito por dois ou três segundos.

– Vamos pedir a saideira, então – propôs.

Com um sorriso, Ellie concordou. Como já havia quase secado o seu copo de novo, escalou-se para apanhar mais dois.

Depois de saírem do bar, Ellie percebeu, não sem surpresa, que Andrea não estava com tanta pressa de voltar pra casa, como normalmente acontecia.

– Você está bem? – quis se certificar a garota.

– Você já me perguntou isso umas dez vezes. Eu tô com cara de doente? – perguntou Andrea.

Ellie riu.

– Não. Nada, deixa pra lá. Vamos?

– Não – disse Andrea, surpreendendo a outra. – Que acha de uma caminhada?

– A essa hora? – estranhou Ellie.

– Não vai me dizer que você tem coisas pra ler em casa? – provocou Andrea.

Ellie riu de novo, tomou Andrea pela mão e seguiu andando, sem saber o rumo certo. Por algum tempo, as duas voltaram a conjecturar sobre Edward, se ele se dera bem ou não. Depois, comentaram bobagens sobre a rua, as luzes, as pessoas estranhas que passavam por elas. E só então, depois de mais de uma hora vagando, finalmente decidiram voltar pra casa.

Assim que entraram no apartamento, sem combinar, as duas foram direto espiar pela fechadura do quarto de Edward, e com euforia constataram que o amigo conseguira, e embora já adormecido, estava acompanhado.

– Não acredito! Ele conseguiu! – vibrou Ellie, esforçando-se para cochichar.

Andrea sorriu e a abraçou. Também estava feliz por Edward. Ele era um bom amigo, e os dois sempre travavam discussões longas sobre política internacional, além de trocarem dicas sobre suas pesquisas.

– Bom – disse Ellie. – obrigada por ter me ajudado.

– Imagina. Eu me diverti bastante. Sou eu quem tem de agradecer.

Sem graça, Ellie apenas baixou os olhos.

– Então... Boa noite – despediu-se Andrea, indo para o próprio quarto.

– Boa noite, And.

Deitada na cama, horas depois, esperando pelo sono que teimava em não vir, Andrea ainda repassava cada acontecimento daquela noite. O ponto que a inquietava, logicamente, era o beijo que Ellie havia roubado, ou mais precisamente, o fato de que ela não havia se importado nem um pouco.

Andrea acreditava que todo beijo era um beijo, independentemente do motivo que tivesse levado ao acontecimento. Ela tinha se importado, sim, só não entendia exatamente como.

Ellie a deixava sempre mais leve, era uma boa conselheira, uma amiga leal, e quando Andrea estava de bom humor, era a melhor das companhias. Satisfeita, a garota concluiu que seu humor melhorava cada vez mais. Se ainda não se sentia completamente bem, sabia que estava no caminho certo, e que talvez um dia, e quem sabe muito em breve, poderia olhar no espelho e sorrir, sabendo ter reencontrado uma parte de si mesma da qual ela sentira muita falta.

A depressão deixaria suas marcas, obviamente. Cicatrizes no lugar de feridas que antes ainda sangravam. Melhorar nunca seria como apagar o passado. Andrea sabia que isso era impossível. Mas era uma mudança de rota. Era outro caminho. E ela tinha certeza de que seria um percurso muito mais interessante. Num impulso, apanhou o celular, selecionou o número de Lena, que nunca tivera coragem de apagar, e escreveu:

“Eu sinto muito mesmo. E realmente espero que você esteja bem. Só queria dizer, de um jeito diferente agora, que nunca vou deixar de amar você”.

Mirando as frases escritas no editor de mensagens do seu celular, Andrea controlou seu ímpeto de apagá-las. Visitar aquele sentimento ainda doía, mas era como ela tinha escrito: era de um jeito diferente.

Insegura sobre o efeito que causaria enviando aquele torpedo para a ex-namorada, acabou desistindo, e largou o aparelho do jeito que estava, sobre o criado mudo. Encarando o teto escuro do quarto, esqueceu do assunto, voltou a pensar no beijo de Ellie, na pesquisa do mestrado, no beijo de Ellie, na saudade de casa, no beijo de Ellie... E no beijo de Ellie.

Estava quase adormecendo quando lembrou de programar o despertador, e ao apanhar o aparelho celular, totalmente esquecida de como o tinha deixado, enviou sem querer a mensagem escrita mais cedo.

– Droga! – ralhou consigo mesma.

Mas já era tarde demais...





* * *




Quando Kara chegou em casa, depois do estágio, a cozinha estava tomada por um aroma delicioso.

– Mas que novidade é essa? – saudou ao ver Lena detida com as panelas.

A advogada sorriu, orgulhosa e divertida, depois sugeriu:

– Experimenta isso aqui e me diz o que acha – ofereceu uma colher de molho à garota.

Kara sorveu com cuidado, degustou sem pressa, e nem precisou fingir uma expressão satisfeita, a qual surgiu voluntariamente.

– Hmmm... Divino! Se não tiver mesmo nada programado pra quando largar o escritório, pense nisso... – Kara abrangeu a cozinha num gesto.

Lena sorriu de novo, muito satisfeita.

– Como foi o resto da tarde? – perguntou, casualmente.

– Ah, nada demais – Kara respondeu enquanto ia até a sala para largar suas coisas. – E você? Parece bem melhor – observou.

– De fato. Aquele seu remédio é ótimo. Não quer me passar o nome?

– Pra você ficar tentada a fazer de novo? Bela tentativa, doutora, mas não me pegou.

– Tá bom, chata.

– Você chegou a prestar um pouco de atenção na audiência, mais cedo, ou usou o truque de parecer concentrada para cochilar no fórum? – questionou Kara.

Com mais um sorriso, Lena se satisfez ao ver a curiosidade de Kara entregá-la de novo.

– Eu já não comentei com você no carro? – fingiu esquecimento.

– Não... – respondeu Kara.

Servindo um copo de suco para Kara e pousando ele sobre a mesa, diante da garota, Lena explicou:

– Tô brincando. Estava deixando pra ter essa conversa quando um percentual mínimo dos meus neurônios tivesse ressuscitado. Porque né? 

Kara riu, apanhando o copo.

– Então? – apressou, sendo consumida pela própria curiosidade.

– Olha, Ka, você fez o que tinha de fazer. Era um caso simples, você estudou, fez o dever de casa e livrou o cara.

– Mas...?

– “Mas” nada – respondeu Lena. – Por ser a primeira vez que você fez tudo sozinha, devo dizer “parabéns”. Ninguém esperava de você menos do que uma defesa perfeita.

Confusa, Kara não conseguiu definir se aquilo se encaixava como um elogio ou apenas uma constatação.

– Acho que entendi – mentiu a garota.

Depois de alguns instantes detida no fogão, Lena voltou a se aproximar, trazendo uma pequena porção na direção de Kara.

– O que é isso? – questionou a garota.

– Arroz, ué.

– Não tem só arroz aí – apontou Kara.

– Alguns ingredientes secretos, admito. Experimente – ofereceu a advogada.

Kara obedeceu.

– Hmmm... Pimenta do reino e o que mais? – quis saber.

– Já disse: segredo! – insistiu Lena.

Kara bufou, mas não perguntou de novo. Com isso, Lena voltou a falar da audiência:

– Sabe quando você atormenta o Jim na frente dos meninos e eles acham graça?

– Sim...

– Mas quando você tira sarro de mim eles quase morrem de rir?

A expressão de Kara denotava sua confusão. Lena explicou:

Qualquer um tira sarro do Jim, por isso é menos engraçado. Espere até arranjar um caso mais difícil. Aí saberemos melhor o quanto você aprendeu.

– Hum. Entendi.

– Até lá, continue fazendo a lição de casa – sugeriu Lena.

– Certo.

– E não seja tão “dada” ao cumprimentar o juiz e o promotor – Lena continuou.

– Eu só fui simpática – defendeu-se Kara.

Lena apenas balançou a cabeça. Como a simpatia não era o seu forte, a dos outros também não lhe atingia. Esperando o jantar ficar pronto, Lena apanhou mais um copo, sentou-se perto de Kara e ficou detida no próprio suco, como se ele fosse realmente interessante.

– De qualquer modo – retomou Kara. – Obrigada por ter ido comigo.

Em resposta, Lena sorriu. E percebeu tarde demais o quanto estava se traindo, daquele modo. Seus olhos não conseguiam mais desviar. Na verdade, eles simplesmente não queriam mais encarar coisa alguma, a não ser os orbes de Kara.

As duas partilharam aquele momento num silêncio nervoso, e Lena estava prestes a dar o próximo passo, quando Kara anunciou:

– Bom, vou tomar um banho, foi um dia cheio.

Lena se levantou, retomando aos poucos a sobriedade.

– Claro.

Kara já estava a meio caminho do quarto quando Lena lembrou de perguntar:

– Você não tem mais aula hoje, tem?

A resposta veio em seguida:

Não!

Sorrindo animada de novo, Lena pensou: “ótimo!” E voltou a se ocupar do jantar.

Kara voltou pra cozinha cerca de vinte e cinco minutos depois, com os cabelos ainda úmidos e seu sorriso pueril de sempre.

– E aí, preparada para uma aventura gastronômica? – brincou Lena.

A garota hesitou, um pouco sem graça. Estava começando a responder quando o interfone as interrompeu:

– Na verdade eu combinei de sair com a Lucy... Vamos comemorar por causa da minha primeira audiência e tal... – Kara sorriu, sem conseguir disfarçar seu orgulho.

Lena se adiantou para atender.

– Lucy? – questionou.

E ao ouvir a confirmação, abriu a tranca. Recolocando o fone no lugar, a advogada olhou de novo para Kara:

– Nesse caso... – mas não conseguiu formular nada pra dizer, porque qualquer frase que tivesse pensado, morreu em algum lugar dentro de si.

Lucy foi rápida, e em seguida já tocava a campainha da porta.

– Oi, Lena – cumprimentou a recém chegada.

A advogada sorriu polidamente.

– Oi, Lucy. Fique à vontade.

– Na verdade a gente já vai, né? – encarou Kara.

A estagiária já tinha tratado de apanhar suas coisas.

– É, isso – tomou a mão na namorada. – Até mais, Lena. E, de novo, valeu pelo favor. E pelo carro. E...

Quando ela olhou de novo, Lena já tinha sumido na cozinha, e despediu-se com uma expressão banal, mas cujo tom não deixou de carregar um certo desdém:

Divirtam-se! 

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