O beijo

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Stacy abriu a porta do apartamento de Andrea sentindo duas coisas: primeiro, alívio pela companhia, já que ela detestava quando Kara e Andrea estavam juntas. Segundo, curiosidade, porque Winn e Mike subiam as escadas aparentemente discutindo.

– Oi Stay – Mike lhe deu um beijo no rosto e foi entrando.

– Oi Stacy – Winn fez a mesma coisa.

– Meus pais! – Kara pulou do sofá para cumprimentar os dois, com um sorriso enorme.

– “Pais”? Que história é essa? – inquiriu Andrea.

– Oi And – disse Winn, rindo.

– Oi And – cumprimentou Mike.

– Cadê o meu abraço? – cobrou Kara.

Os três se abraçaram calorosamente. Stacy, ainda fechando a porta, não pôde deixar de sentir um pouco de ciúmes daquilo. Antes de Kara aparecer, Winn e Mike não eram tão secos com ela.

Na verdade, todos pareciam se derreter para a loirinha, e Stacy não conseguia ver um motivo. Achava Kara completamente sem graça, além de muito tonta. Curiosa, inconveniente, sempre dava um jeito de aparecer e cortar o clima entre ela e a namorada.

Porque ela não era boba, e já tinha percebido que Andrea mudava na presença de Kara. Parecia se conter nos carinhos e palavras de afeto com a namorada. Como se fosse culpada por alguma coisa...

– Vamos adotar essa pequena! – sorriu Mike. – Sempre quis uma filha loirinha de olhos azuis.

– Nhá... – Kara ruborizou, embora seu sorriso fosse orgulhoso.

– Apesar de você ser meio grandinha pra precisar de adoção, não é? – comentou Winn, afagando o topo da cabeça dela.

De fato, Kara era quase tão alta quanto Mike.

– Mas vão me adotar do mesmo jeito. Depois que vocês dois casarem, claro.

Winn sentiu seu rosto pegar fogo.

– Não vou me casar com um mané – afirmou Mike.

A sala ficou em suspense.

– Mané? – perguntou Andrea.

– Isso mesmo. E não faz essa cara – ralhou com Winn. – Você deveria se envergonhar de enganar aquela pobre coitada.

– Perdemos alguma coisa? – quis saber Stacy.

– O Mike foi sabatinado pela Annie, hoje – o próprio Winn explicou.

– Nossa, como ela está? – perguntou Andrea.

– Mal, né? – disse o estudante. – Anos se perguntando o que ela fez de errado pra ele terminar o namoro.

– Mas ela não fez nada de errado! – disse Winn.

– Explica isso pra ela, então.

– Eu já expliquei. Ela quer um motivo.

– Olha, Winn, eu acho muita imaturidade sua esconder uma coisa dessas dela. E você envolve outras pessoas na história, sabe? Detesto mentir, ainda mais para uma garota que nunca me fez nada de mal.

– Eu sei, mas... Não sei o que fazer.

– O Mike ta certo, amigo – disse Andrea. – A menina é muito gente boa, e deve sofrer achando que é culpada.

– Vocês acham que ela vai gostar de saber que eu sou gay? Ela vai pirar!

– Ela já está pirada, pelo menos vai ser por causa da verdade, dessa vez – disse Mike.

– Ah, saco.

– Eu, hein. Nunca imaginei que você tivesse uma ex-namorada – disse Kara, voltando a se sentar ao lado de Andrea.

– Pra você ver... – comentou ele, rindo.

– Nunca fiquei com um garoto. Será que é legal?

– Se você gosta de meninas, não deve ser – respondeu Mike.

– Você já beijou uma mulher?

– Nunca! Eu hein, que nojo!

Explodiram numa gargalhada e seguiram a conversa animadamente. Kara, apesar de parecer muito à vontade, estava pisando em ovos. Depois de ter desaparecido da Empire, logo após dizer “aquelas três palavrinhas” para Andrea, nunca mais tocou no assunto.

As duas se encontraram na escada na semana seguinte, mas a mais nova deu uma rápida desculpa e sumiu de novo. Naquele dia, ela tinha se atrasado de propósito para chegar apenas depois que Winn e Mike já estivessem lá, mas eles tinham se atrasado ainda mais que ela.

A sorte foi que Stacy, para variar, já estava com a namorada, e logicamente Andrea não tocaria naquele assunto na frente dela.

Porém a garota sabia que mais cedo ou mais tarde teria de prestar contas. Ficava inventando desculpas mentalmente, mas todas soavam esdrúxulas demais.

O que diria? Afinal de contas, era verdade... Amava Andrea. Estava apaixonada por ela como nunca esteve, por ninguém. Apesar de novo, era tudo concreto. Mas confuso, claro.

Stacy estava sempre montando guarda, cuidando de seu território, não deixava a menor brecha. E aquilo lembrava à Kara, o tempo todo, que a garota que ela amava não podia ser sua.

Definitivamente, para ela, amor era uma coisa que só tinha trazido problemas. E até ali, pouquíssimas alegrias. Queria acreditar que poderia ser diferente, mas ainda não tinha motivos palpáveis para isso.

Então esperava. Dedicava-se aos estudos, tentava pensar em outra coisa. Um dia, quem sabe, daria certo. Ou um dia, talvez, conseguisse amar outra, alguém que não estivesse com o coração ocupado.

Quando é que esse dia iria chegar? Kara não sabia dizer. Só sabia que o desejava, como nunca desejara nada, com tanta força.

Pediram duas pizzas gigantes, comeram, riram mais, ficaram atualizando uns aos outros sobre as novidades. E a certa altura da noite, o toque do celular de Winn foi ouvido.

– Número estranho... – disse ele, afastando-se alguns passos.

Ao notar o seu semblante preocupado, Andrea perguntou:

– Quem é, Winn?

Ele cobriu o aparelho com a mão e alternou o olhar entre todos que o encaravam.

– É do seguro da Lena. Eu sou o contato deles, caso...

Não completou a frase. Ficou ouvindo o que era dito do outro lado da linha, com o rosto cada vez mais transtornado. A ligação foi interrompida rapidamente.

– Winn, você tá branco! – disse Mike, se aproximando, preocupado.

– Que aconteceu? – Kara perguntou.

Depois de tomar fôlego, como se buscasse coragem, ele disse:

– O carro da Lena foi metralhado.

– HEIN? – Kara se lembrou imediatamente do dia em que Lena lhe dissera que havia dois homens lhe seguindo.

Andrea sentiu o corpo ceder, as pernas amoleceram e por sorte havia um sofá, atrás de si, sobre o qual caiu, em choque.

– Como assim? – balbuciou.

Winslow cobriu o rosto com as mãos, em alguns segundos de silêncio completo e absoluto na sala. Depois, mexeu-se, nervoso.

– Preciso ir pra lá!




Assim que Winn se levantou, todos se alvoroçaram. Mike logo acrescentou:

– Seja lá pra onde você estiver indo, eu vou junto.

– Vou pro escritório da seguradora. Não disseram muita coisa.

– Ela... Ela... Estava no carro? – perguntou Andrea.

– Não – respondeu Winn, nervoso. – Mas desapareceu.

– Eu vou com vocês – Andrea se levantou.

– Ahn? – Stacy a segurou, pelo braço.

– Eu também – disse Kara.

– Então vamos de uma vez – Mike abriu a porta.

– E eu? – perguntou Stacy, ao ver que Andrea já apanhava a própria bolsa.

– Você fica, oras. Eu ligo assim que tiver notícias.

Diante de todo aquele nervosismo, Kara acabou rindo baixinho. Apenas Stacy percebeu, respondendo a garota com um olhar mortal.

Winn fechava a porta quando se lembrou de algo:

– Stacy, se a Lena ligar pra cá, avise imediatamente.

– Claro.

– Estou falando sério.

– Eu também, Winn. Credo, que figura você faz de mim...

Olhando o hall e se certificando de que Andrea já tinha descido, Winn completou:

– Eu sei a verdade, Stacy. Todos sabem. Você não vai conseguir enganar a And por muito tempo.

– Ela me ama – sorriu.

Winn devolveu o sorriso dela de maneira cínica.

– Se você prefere acreditar nisso... Até mais!

Bateu a porta e desceu correndo. A semente da dúvida estava plantada... E certamente os fatos se encarregariam de regá-la.
* * *


Como o escritório era pequeno, a chegada dos quatro lotou o lugar. A secretária do turno da noite não deu a Winn nenhuma informação adicional. A polícia fora acionada, Lena continuava desaparecida e ainda não havia uma explicação racional para o ocorrido.

– No dia do seu aniversário – disse Kara, para Andrea. – Lena viu dois homens rondando o carro dela.

– Como você sabe?

– Ela despistou os dois voltando para o nosso prédio. Encontrei-a no terraço, depois que saí do seu apartamento.

– Esse mundo que ela vive... – Winn balançou a cabeça.

– Ela comentou mais alguma coisa? – inquiriu Andrea.

– Faz mais de um mês que não falo com ela – respondeu Kara.

– Eu também – disse Mike.

– E eu também – acrescentou Winn.

– Acho que nem preciso comentar isso – disse Andrea.

– Olha, ela vai aparecer – disse Winn. – Lógico que vai, deve estar num motel com alguma garota, pelo horário.

– É, claro. Lena é esperta – disse Kara.

– E vocês precisam conversar, And – continuou Winn.

Ao invés de responder, Andrea ficou olhando para o relógio da parede. Entre si, os outros três se questionaram em silêncio se era hora de contar a verdade, ou esperar ainda mais.

Kara estava abrindo a boca para começar o assunto quando a porta se abriu.

– Oi gente – Lena os encarou com surpresa. – Procissão fora de época? Nem me convidaram...

– Puta que pariu, Le! – Mike a abraçou com força.

– Sua maluca! – Winn se adiantou.

– Que houve, pessoal?

– Onde você estava? – perguntou Kara.

– Até você, Pirralha? Já passou do horário das crianças dormirem.

– Ah, se manca Lena! A gente achou que você tinha morrido!

Por um segundo seus olhos encontraram os de Andrea, que nada dissera. Tomando fôlego, Lena desfez sua expressão branda e começou a se explicar:

– Tudo bem, fiquei sabendo do carro. Mas estou bem, como podem ver. Maldita criminalidade de National City. Me sustenta, mas de vez em quando enche o saco.

– Você não pode ser normal – Andrea se levantou. – E bem, está viva, afinal de contas. Vou voltar para casa.

Em silêncio, os quatro ouviram a porta bater de novo, depois que Andrea passou por ela. Lena contava mentalmente até dez, mas antes de chegar no cinco, girou nos calcanhares e a seguiu.

– And, espera!

– Me deixa, Lena...

– And, para. Você nem sabe pra onde está indo.

Ela olhou a sua volta. A rua estava escura e deserta. Nenhum sinal de um táxi disponível.

– Estou indo pra qualquer lugar longe de você!

Lena apressou o passo e segurou Andrea pelo braço, com firmeza. Ia dizer alguma coisa, mas esqueceu assim que viu o ódio plantado nos olhos da amiga. Ou ex-amiga...

– Lamento ter preocupado vocês. Na certa quiseram me dar um susto, eu só descobri quando não achei o carro. Estava sem o celular, liguei para o seguro com o telefone de...

– Da mulher com quem certamente você estava na cama.

Por longos segundos, Lena consultou sua consciência. Nunca metia as pessoas que lhe eram caras no meio de assuntos profissionais, por isso era cômodo deixar Andrea acreditando naquilo.

– Não – disse, em meia concessão.

– Você não me engana.

– Bem, isso não faz diferença agora. De qualquer forma, obrigada por ter se preocupado.

Andrea começou a rir, desvencilhando-se da mão de Lena, que ainda retinha seu braço.

– “Obrigada por ter se preocupado”. Nossa... É a sua cara vir com uma frase idiota dessas.

– And...

– De nada, por ter bancado a trouxa mais uma vez. Durma feliz – virou-se de novo, voltando a andar.

– Não seja estúpida, você vai ser assaltada em dois minutos.

– Prefiro discutir com um assaltante do que com você.

Às suas costas, Lena ouviu quando Winn, Mike e Kara alcançaram também a rua.

– Winn, leva ela pra casa, por favor. Eu ainda tenho de resolver umas coisas.

– Você está bem mesmo?

– Sim.

A contragosto, foram para o carro. Lena voltou para o escritório e começou a analisar a papelada que a secretária já tinha providenciado. Com dois telefonemas rápidos, conseguiu marcar seu depoimento para a manhã de segunda-feira, na distrito de polícia local.

Outra vez ouviu a porta e mecanicamente se virou.

– Nem comece o discurso. Não arredarei o pé.

– Pirralha, ou você é muito burra, ou é muito louca. Cadê os outros?

– Já foram.

– Tá, então eu vou te deixar aqui, sozinha. E você vai aprender a não meter os pés pelas mãos. Sugiro que fique aqui dentro até o dia amanhecer, porque você não está mais na idílica paradise village onde cresceu.

– Tudo bem – Kara sorriu.

Lena inspirou e expirou vagarosamente, para não perder a paciência.

– Qual parte do “Lena não vale nada” não te explicaram direito? Eu posso repetir, se você quiser...

– A parte de você ter ficado realmente assustada com o que aconteceu.

– Pareço assustada? – desafiou.

Kara se aproximou do balcão onde Lena estava encostada.

– Tem mais alguma coisa para assinar? – olhou os papéis.

– Só um – respondeu, apanhando a caneta.

Por maior que fosse a sua concentração, sabia que Kara perceberia. Maldita garotinha curiosa. A assinatura, como as anteriores, saiu trêmula, irregular.

– Eu vou chamar um táxi – disse Kara, com um sorriso ameno.

Lena ficou quieta, ali e durante todo o caminho. Não discutiram quando chegaram, a advogada simplesmente deixou o carro, ciente de que Kara fazia o mesmo.

Subiram até a cobertura igualmente caladas. Quando entrou em casa, Lena largou a bolsa no primeiro móvel disponível e foi servir uma dose de uísque.

– Tem leite ninho no armário, pra você.

Kara foi a primeira a deixar o riso escapar, e logo depois Lena a seguiu, ainda segurando seu copo, balançando a cabeça.

Após algum tempo, Kara finalmente falou:

– Está mais calma?

A advogada confirmou, apenas movendo a cabeça. Terminou sua dose e serviu outra. Kara tinha se sentado no sofá, pacientemente apenas aguardando.

– Para todos vocês terem aparecido, deveriam estar juntos quando o seguro ligou para o Winn.

– Sim.

– Eba... Atrapalhei a festinha... – disse, amargamente.

– Tava um saco mesmo.

– Stacy?

– Sempre – Kara virou os olhos, cruzando as pernas.

Outro silêncio prolongado se seguiu. Ao terminar finalmente a segunda dose, Lena comentou:

– Eu acho incrível como você tenta procurar alguma coisa em mim que seja digna de afeto.

– Não... Só fiquei com pena mesmo – sorriu.

– Você é terrível... – Lena riu baixinho. – E o seu curso? Tudo indo bem?

– Epa! A grande doutora Luthor mudando bruscamente de assunto? – provocou.

– Hum... Tem razão. Vou economizar a grana que vai pra terapeuta e usar você. Voltemos ao assunto Lena, então – sorriu para a mais nova.

– Você faz análise?

– Tentei algumas vezes. Nunca dava certo...

– Por quê?

– Conflitos éticos.

– Ah, imagino. Dormia com as terapeutas e estragava o tratamento.

– Sem exceções – confirmou, balançando a cabeça.

Kara riu, divertida.

– Você pretende um dia parar de disfarçar frustração com sexo?

Lena a encarou, por um tempo.

– Ui. Essa doeu – fingiu-se de ofendida e depois de um tempo, complementou. – Respondendo: não.

– Por quê?

– Porque dá certo.

– Eu não vejo como.

– É porque você ainda não experimentou – piscou o olho.

Kara sentiu seu rosto pegar fogo.

“Empatei – disse Lena. – Quer parar por aqui ou se arriscar a uma previsível derrota homérica?

– A minha vitória é você perder seu tempo argumentando.

A garota estava certa. Lena não costumava dar assunto pra ninguém. Por mais que até ali a última palavra fosse sempre sua, a cada oportunidade Kara conseguia prolongar mais a conversa.

“Não que seja um tempo realmente perdido, é claro.

– Pode ser... – Lena se levantou. – Tá com fome, Pirralha?

– Um pouco – Kara a seguiu até a cozinha.

– Deixa eu ver as opções – abriu a geladeira. – Temos pizza congelada e... Pizza congelada. Qual você vai querer?

– Não sei... Acho que... Pizza congelada?

– Eu também! Que bom que concordamos.

– Quem foi que atirou no seu carro?

– Capangas de um cliente ranzinza – respondeu a advogada, enquanto tirava a pizza da embalagem.

– Eles iam matar você?

– Não.

– Qual o problema?

– Você não acha mesmo que eu vou responder, não é?

– Hum.

– É assunto de adultos – piscou o olho.

– Rá-rá-rá.

Enquanto Lena se detinha nos afazeres, ficaram em silêncio. Depois de algum tempo, Kara começou a rir.

– Que foi agora?

– Lembrei de uma coisa.

– Compartilhe.

– O Winn tem uma ex-namorada – riu mais.

– Por que isso é tão engraçado?

– É que não dá pra imaginar...

– Realmente, ele mudou bastante.

– Aí lembrei do Mike dizendo “ai que nojo” quando eu perguntei se ele já tinha beijado uma mulher.

Dessa vez Lena riu junto.

“Você já... Já ficou com um homem? – a curiosidade de Kara aflorou de novo.

– Sim.

– Sério?

– Como você supõe que eu tenha subido tão rápido na carreira? – cruzou os braços, encarando a mais nova.

Kara deixou o queixo despencar sem constrangimento.

– Meu Deus!

Até o limite do suportável, Lena manteve o olhar firme, mas acabou gargalhando.

– A sua cara de choque quando eu falo alguma coisa desse tipo, sinceramente... – continuou rindo.

– Não tem graça!

Depois de conter o riso, Lena respondeu.

– Sim, fiquei com alguns, há muito tempo. Antes da... Primeira garota.

– Hum. Como é?

– Sob qual aspecto?

– Não sei...

– É como beijar as costas da própria mão – disse. – Como comer crepe sem recheio, como admirar uma paisagem só por foto. É quase a mesma coisa. Mas não é, entende?

– Acho que sim – fez uma pausa. – Eu estava pensando se... Bom, nunca beijei um homem... Como posso saber que não vou gostar?

– Interessada em algum?

– Não, mas... Isso que você descreveu... Foi o que senti no beijo da Bia. Fora o primeiro, quero dizer. Ficou aquela sensação de que... – apertou os olhos e os lábios, em busca de um termo. – De que podia ser mais.

– E...?

– Talvez eu não seja lésbica.

– Pois eu acho que você é. Da raiz dos cabelos até a pontinha do dedão.

Os olhos de Kara se arregalaram.

– Mas... – encarou o chão.

– Se você beijar um homem e não sentir nada também, vai pensar que é assexual?

A mais nova logo percebeu a lógica no raciocínio de Lena.

– Hum.

Com a desculpa de levar a forma de pizza até a pia e a intenção maligna de perturbar Kara ainda mais, Lena se aproximou perigosamente da garota, trajando seu olhar mais provocante.

Sem entender nada, Kara devolveu com um olhar confuso, mas por meio segundo, seus olhos pousaram na boca de Lena, lapso que ela reprimiu imediatamente.

– Que foi? – perguntou Lena, trivialmente.

– Que foi digo eu.

Lena a encarou de novo, do mesmo jeito. Propositalmente, retardou a resposta.

– Estou querendo chegar na pia e você está no meio do caminho.

O rosto de Kara se coloriu de vermelho e ela deu um passo largo para o lado, rapidamente. Lena continha o riso por notar o quão sem graça tinha deixado a garota.

“Achou que era o quê? – perguntou a advogada, com falsa inocência.

– Err... Aaaam... Nada.

– Nada? E você ficou um pimentão por quê, Pirralha?

Outra vez ela gaguejou. Lena não se conteve e finalmente riu, olhando pra ela.

“Lésbica, com toda certeza. Uma mulher não pode nem chegar perto que você fica toda emocionada – riu.

– Ah, eu odeio você sabia?

– Tão gentil da sua parte... – serviu dois pratos com um pedaço de pizza em cada um. – Suco ou refrigerante?

– Hein?

– Volta pra Terra, Pirralha. Eu estava só provocando, não tenho a menor intenção de levar isso a cabo.

Kara a encarou com desdém.

– Suco – disse, secamente.

Oculta pela porta da geladeira, Lena riu de novo. E ficou pensando que se a idéia de Kara era lhe fazer esquecer do episódio do carro, a garota se saíra muito bem.

Comeram enquanto discutiam gostos culinários. Pela janela da varanda, os primeiros raios de sol se apresentaram.

– Melhor eu te levar pra casa, senão você perde a hora do desenho animado.

– Não tem problema, hoje é domingo – respondeu, ignorando a enésima gozação de Lena.

– Hum.

– Rá – gabou-se a mais nova.

– Bem, eu cozinhei, você lava os pratos. “Rá” pra você também.

Kara se levantou e vagarosamente cumpriu a distância entre o sofá que ocupava e a poltrona onde Lena estava sentada. Inclinou-se na direção do seu rosto, calculando cada segundo de deslocamento.

Primeiro, Lena estranhou, depois, devolveu o seu olhar. Quando, por um mísero instante, ela prendeu a respiração, Kara mirou o móvel ao seu lado.

– Licença... Tô pegando o prato.

E foi rindo até a cozinha, deixando Lena realmente abismada com a ousadia dela.

Logo depois, ouviu-se a torneira sendo aberta e Kara ficou cantarolando enquanto dava um jeito na louça.

“É só uma Pirralha” pensou Lena. “Uma Pirralha que aprende muito rápido” acrescentou, igualmente apenas para si mesma.

Travou uma batalha interna. Uma parte de si estava adorando aquele jogo de provocações, que já durava meses apenas com o olhar, e naquela madrugada tinha ficado substancialmente mais sério. Essa parte queria ir adiante.

Outra parte previa as consequências. Decididamente, Kara era a garota que ela tinha desejado com mais frequência nos últimos tempos. A mais interessante. Dentre as implicações, estava encerrar aquilo.

Depois que ficasse com ela, não poderia provocar mais. E esse detalhe a freava.

– Pensando na morte da bezerra? – gracejou a mais nova.

Com os braços, tinha envolvido o pescoço de Lena, por trás, uma vez que tinha se aproximado sem ser notada.

Lena engoliu em seco quando os lábios de Kara quase colaram no seu ouvido.

“Terminei com os pratos. Agora você já pode me levar para... – fez uma pausa estratégica. – Casa.

– Ah, sim.

– Ué, tá com frio, Lena?

– Não – levantou-se antes que perdesse a cabeça.

– Tá arrepiada... – comentou Kara, sorrindo maliciosamente, aproveitando-se que Lena a encarava, do meio da sala.

– Espertinha, você.

Kara respondeu com um sorriso satisfeito, perguntando-se de onde tirara tamanha ousadia. Seguidamente se impressionava consigo mesma. E quase sempre Lena estava envolvida nisso.

A advogada apanhou a bolsa e andou em direção à porta, não permitindo mais que Kara visse o seu olhar.

– Obrigada pela pizza – disse a mais nova, enquanto a outra girava a chave.

– Por nada.

Kara continuou:

– “Puxa, Kara, muito obrigada por ter passado a noite em claro, enquanto eu me distraía desse evento terrível que ocorreu e deixou todos muito assustados...” – sugeriu.

– Ah é? Então... Que tal um “puxa, Le, muito obrigada por essa madrugada maravilhosa, pois como eu não sei o que é sexo, acho que boas conversas são a melhor maneira de passar o tempo...”

Ela esperava ver o rosto de Kara ruborizando de novo e já visualizara o próprio sorriso de deboche. A reação da garota, entretanto, fora diferente.

E quando Lena deu por si, as bocas estavam unidas e as línguas duelavam de forma voraz. Nem sentiu quando suas costas foram chocadas contra a parede. Tudo foi instintivo, exatamente por isso que seus braços envolveram o corpo de Kara possessivamente, e nem que a “Pirralha” quisesse conseguiria fugir desta vez.



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