Vocação

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Kara acordou em sua cama, na segunda-feira, e inevitavelmente, o primeiro pensamento que teve lhe remeteu à Lena. Suspirou, sem se conter. Virou-se na cama, abraçando o travesseiro.

Incrível! Sua primeira transa tinha sido melhor do que jamais sonhara. Pensou em todas as vezes que tinha desejado a advogada. Secretamente, claro. O sorriso foi inevitável.

Como seria, quando a encontrasse de novo? Como agiriam? Teve de se conformar... Já estava se acostumando com aquela nova fase da vida onde tudo se aprende na prática. Sem conselhos maternos, nada que conste em livros.

Bem, talvez, na verdade, sua mãe soubesse o que dizer. Afinal, ela já tivera dezenove anos um dia. Por outro lado, ela nunca fora lésbica. Enquanto se levantava e ia para o banho, Kara começou a pensar na reação dos pais quando contasse que gostava de mulheres.

Seria catastrófica? Não fazia idéia. Não conseguia suspeitar, imaginar, prever. Nunca tinha falado sobre sexualidade com os pais. Nunca tinha notado aquele assunto em casa.

Pensou melhor. Tinha ouvido sim. O pai xingando o juiz do futebol de viado. Isso, de certa forma, é sexualidade. Mas sobre mulheres homossexuais, não conseguia lembrar de nada.

Certamente, como a imensa maioria dos pais, os de Kara esperavam que ela algum dia se casasse com um homem, tivesse filhos, uma família convencional como aquela na qual tinha crescido.

Por outro lado, a garota não conseguia se imaginar escondendo algo tão seu, algo que a definia tanto, das duas pessoas que a tinham posto no mundo.

Só não contara sobre Lucy, já nas férias, porque envolvia outra pessoa que eles conheciam, e Kara temia que seus pais, eventualmente desaprovando o namoro, viessem a contar para os pais dela.

E isso seria definitivamente terrível. Mesmo que os pais dela aceitassem bem -- o que Kara duvidava -- era direito deles saberem pela própria Lucy.

Kara julgava esse um dos direitos mais inalienáveis dos homossexuais: escolher quando e se seus pais deveriam saber da orientação sexual dos filhos.

Havia uma intrincada relação entre a decisão de contar aquilo, e revelar outra escolha. Não queria mais ser médica. O cursinho tinha oferecido uma série de atividades de vivências para as carreiras escolhidas pelos alunos e aquilo aproximou Kara da rotina que ela sonhara para si desde pequena.

E não tinha gostado nem um pouco! Não que não soubesse dos horários apertados, das péssimas condições de trabalho, dos dilemas éticos, enfim, de todas as clássicas dificuldades.

Apenas havia uma grande diferença entre saber daquilo como paciente e como telespectadora de seriados, e encarar aquele mundo na prática!

Igualmente, não tinha conseguido estudar como imaginara quando se mudou. Porque quando foi para National City, era virgem, achava que era hétero e nunca tinha bebido muito na vida.

As tentações da vida social, sexual e afetiva tinham sobrepujado e muito a aplicação nos estudos. Não o interesse por ele, mas o tempo que conseguia dispor para dissecar a pilha imensa de apostilas.

E Medicina era o curso mais concorrido do país. O resultado dos simulados tinha dado uma boa noção de como ela estava. Foram oito até novembro. Em sete, ela simulara inscrição em Medicina. Nos primeiros, tinha até chegado perto, mas em nenhum tinha passado.

No último, simulou a inscrição em Direito. Ficou em primeiro lugar, dentre todos os alunos da rede interessados naquele curso. Tinha ido muito melhor do que em todos os outros testes, embora soubesse que não estudara mais.

Conversando com a orientadora vocacional do cursinho, recebera uma interessante explicação: ao mudar a opção de curso, tinha tirado toda a carga de pressão que envolvia sempre o conceito “Vestibular pra Medicina”.

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