As Três Histórias

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Kara não conseguia encontrar um bom lugar para sentar e estudar, no seu novo apartamento. Tivera uma noite horrível, rolara na cama até altas horas da madrugada e quando finalmente pegou no sono, foi acometida de uma série de pesadelos os quais tentava esquecer, inutilmente.

Sentia-se terrivelmente estúpida pelo que fizera. Estava bêbada, era verdade, mas ela sabia que nada poderia justificar aquela traição. Já havia avaliado mais de uma dezena de vezes todas as possibilidades. E pensando friamente, ela sabia que as chances de Andrea vir a descobrir aquilo eram muito remotas. Quase inexistentes. Porém Kara sempre saberia, e talvez para sempre se lembrasse do que fizera; do mau passo, do deslize, da quebra de confiança.

Ela já tinha se sentido assim, embora não com essa magnitude. Era consciência pesada... Como quando escondia dos pais que estava namorando Lucy. A primeira Lucy, não a misteriosa colega de faculdade que era, no momento, o centro da sua aflição.

Aliás, Lucy já havia ligado duas vezes no seu celular, mas Kara não atendera. Sequer sabia o que dizer. Também não queria passar por otária, ou “caipira” como dizia Lena, e deixar a outra acreditando que ela ficara tão mal por conta de algo que na verdade quase todo mundo faz: dar uma escapulida de vez em quando.

Nem mesmo a programação da TV ajudou a garota a esquecer aquele assunto. Cozinhar também não deu certo, e para Kara aquela sempre fora a melhor terapia de todas. Pensou em sair de casa, ir dar uma volta, ou tomar um banho, ou ouvir música, ou... Mas era inútil, sabia que nada tiraria aquilo da sua cabeça, e começou a tremer, somente por antecipar como cairia em contradição quando Andrea perguntasse o que ela tinha feito na sua ausência, como tinha sido a festa da turma e por que ela estava tão estranha. Pois sim, Kara sabia que agiria estranhamente. Não tinha qualquer dúvida que se entregaria facilmente, se Andrea desconfiasse de alguma coisa.

As horas pareciam se arrastar como se fosse séculos. Os domingos, por si só, já eram dias estranhos, parados demais. Aquele foi o dia mais longo da breve existência de Kara. O pior, sem dúvida.

Depois de avaliar muito bem as consequências daquela sua decisão, apanhou o telefone e ligou para a namorada.

* * *

Na segunda-feira Lena chegou cedo ao escritório e já encontrou uma pasta nova sobre a sua mesa. A capa amarela denotava que o conteúdo era referente a burocracias internas da firma e por isso ela não se apressou em abri-la. Pediu um café pelo telefone e foi cuidar de um caso que acompanhava há meses. Quando se cansou, finalmente descobriu que se tratava do relatório preliminar de avaliação do estágio de Kara.

-- Ora, ora... -- disse, para o nada, refestelando-se na poltrona.

Aquilo lembrou à advogada que três meses já haviam se passado desde que Kara passara a trabalhar na Martelli. Normalmente ela não perdia mais que cinco minutos naquele tipo de relatório, parando apenas para decidir se considerava cada característica do estagiário em questão “abaixo das expectativas” ou “reprovado”. Nunca havia marcado um mísero xis na opção “excelente”, em quesito algum, para ninguém.

Havia uma única questão que incomodava Lena naquele estágio, e era o fato de ela não saber dizer por que gostava tanto de trabalhar com Kara, se nunca conseguira dividir tarefas com ninguém. Claro que aquilo não era relevante para o relatório, então a advogada tratou de afastar isso da mente.

Como estava detida em elaborar desculpas para um hábeas corpus de última hora, pediu seu almoço no escritório mesmo e só se deu conta de que a tarde avançava quando George Martelli bateu à sua porta.

-- Lena?

-- Entre, George.

Ele não fez cerimônia:

-- Achei estranho a Kara não aparecer justo no dia do relatório preliminar...

Lena pensou por um segundo, torcendo os lábios. Ele estava certo, Kara não tinha ido trabalhar e nem dera notícias.

-- Pedi para ela ficar em casa -- mentiu. -- Achei que seria melhor, para a avaliação.

George a encarou curioso. Parecia estar desconfiado, mas nada disse com relação a isso.

-- Está bem, então.

-- Mais alguma coisa, George?

-- Sim. Meus informantes não trouxeram nenhuma boa notícia de Nova Iorque.

Como Lena o encarou, curiosa, ele continuou:

-- Os Simmons não estão poupando dinheiro nem esforços para acelerar o julgamento.

-- É, nada bom.

-- Eu acho que seria bom você estar preparada, caso surja alguma surpresa.

-- De que tipo?

-- Do tipo, marcar o julgamento pra logo.

-- Estou construindo o caso, George. Não me esqueci dele.

-- Eu sei. Mas eu me refiro às testemunhas e todo o resto. Vai ser complicado convencer quem quer que você ache relevante a depor contra os Simmons.

-- Ninguém vai depor contra eles.

-- Você entendeu o que eu quis dizer. Eles querem a suposta culpada pelo crime atrás das grades o quanto antes. Vou marcar uma reunião com a senhora Simmons, está bem?

-- Para o fim do ano?

-- Para esse mês, Lena.

Ela não escondeu seu contragosto.

-- Bem, você está avisada. Bom trabalho.

Depois que ele deixou a sala, Lena procurou esquecer aquele assunto se detendo na ausência de Kara.

* * *

Pela segunda noite consecutiva, Kara dormiu pouco e mal. Quando saiu da cama fez um café preto, mas não conseguiu sorver nem meia caneca. Só de pensar em comer alguma coisa, já sentiu o estômago embrulhado. Não tinha qualquer condição de ir para a faculdade, mesmo que ainda desse tempo de pegar a terceira aula.

Enquanto o tempo insistia em se arrastar, ela ficou abrindo sites aleatórios e desinteressantes na internet, amaldiçoando a si mesma pela resolução de começar a abrir o jogo com Andrea. Ela tinha contado somente sobre o beijo e a namorada já reagira da pior forma possível... Kara não queria nem pensar no que estava por vir, quando Andrea voltasse de viagem.

Aquela angústia que não passava foi agravando o seu estado de nervos, fazendo com que a garota pensasse em tudo mais na sua vida que não andava bem. Lembrou dos pais, um pouco também porque tivera um pesadelo com eles. Milhares de vezes, já tinha cogitado ligar para sua mãe, tentar conversar só com ela, sem o pai, que demonstrava mais impaciência nas poucas vezes que discutiram o rompimento.

Ao contrário dos outros impulsos, esse novo a garota não reprimiu. A hora não poderia ser melhor, seu pai estaria no trabalho e a mãe sozinha em casa, afinal era segunda-feira. Se até o ano anterior sua mãe sempre fora capaz de lhe acalmar, de lhe mostrar o melhor caminho, por que duvidar que ela não fizesse isso de novo?

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