Vinte e Nove

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Kara foi se mexendo na cama e retomando a consciência aos poucos. O calor característico de um corpo enroscado no seu, abraçando a cintura dela possessivamente, foi um dos primeiros sinais que absorveu do ambiente.

Ao contrário do que previra antes de capotar para o sono, não sentia dor de cabeça. Tinha bebido um pouco além da conta, provocado também um pouco além da conta e, finalmente, tinha se envolvido com a terceira Lucy que se aproximava dela.

Virando-se com cuidado para não acordar a outra, Kara se pôs a observar seu rosto adormecido. Um sorriso involuntário brotou em sua face, e logo as costas de sua mão acariciavam o ombro descoberto de Lucy.

– Linda... – sussurrou.

Se acordou, Lucy não deu qualquer sinal.

Outra vez com extremo cuidado, Kara tentou enxergar o relógio. Nove e meia da manhã! Em seguida, o telefone começou a tocar.

“Droga!” pensou. Lucy continuava com o sono pesado e Kara resolveu atender a ligação:

– Alô?

– Lucy, sua doida, onde você se meteu?

Era a chefe das secretárias. E, felizmente, não tinha percebido quem realmente atendera. Antes que Kara precisasse desfazer o engano, a outra continuou:

– Você tem meia hora para aparecer, ou não conseguirei mais inventar desculpas!

E desligou.

Kara tinha conseguido resistir tão bem às investidas da colega, mas no dia anterior, alguma coisa tinha mudado. Quando Lucy entrou em sua sala, lembrando do compromisso que haviam marcado, Kara só queria saber de sumir da Luthor & Martelli.

Com cuidado, acordou Lucy e avisou sobre o telefonema. As duas se arrumaram às pressas e dividiram uma corrida de táxi até o escritório. Lucy subiu na frente e Kara ficou fazendo hora na rua, de modo a não levantarem suspeitas.

Quando finalmente entrou na sala que ocupava, viu os três novatos detidos em suas tarefas. Nenhum deles comentou seu atraso, afinal, Kara só cumpria horário depois do almoço, em tese nem precisaria estar ali.

Depois de ligar o computador, com um sorriso nos lábios, a garota colocou seus fones de ouvido e seguiu a leitura de um artigo. Estava preparando uma nova apresentação para o próximo congresso que surgisse. Já conseguia vislumbrar um currículo recheado e a idéia de ficar mais conhecida entre os seus pares lhe agradava muito.

Cumprindo um plano que tinha em mente havia bastante tempo, Kara se levantou, apanhou uma pasta e entrou na sala de Lena. Como estava ouvindo música, cantarolava a letra baixinho:

– Perdi vinte em vinte e nove amizades, por conta de uma pedra em minhas mãos. Me embriaguei morrendo vinte e nove vezes...

Ciente do olhar curioso da advogada na sua direção, olhou pra ela por um instante.

– Bom dia, Le – cumprimentou, animada.

Lena não respondeu, e voltou a se concentrar no documento que lia. Kara voltou a cantarolar:

– Passei vinte e nove meses num navio... E vinte e nove dias na prisão... E aos vinte e nove, com retorno de Saturno, decidi...

Lena pigarreou, interrompendo Kara.

– O que está fazendo? – perguntou a advogada.

– Anexando ofícios em processos velhos – respondeu Kara. – Nada que necessite da sua atenção.

– Já terminou?

– Quase lá – disse Kara, voltando a se virar para a prateleira.

Lena aguardou em silêncio, até que Kara se retirasse. Assim que ela fechou a porta, a advogada esfregou o rosto cansado com as duas mãos, suspirando. O bom humor das pessoas, em geral, costumava lhe irritar. Quando era tão evidente, assim como o de Kara, era pior ainda.

Não foi difícil para Lena perceber o quanto Kara estava mudada. Alguma coisa no olhar e no tom de voz dela denunciava o óbvio: que fora da firma, exatamente como dentro dela, a rotina da garota andava pra lá de agitada.

Perto do intervalo do almoço, a estagiária bateu à sua porta mais uma vez. Entrou carregando uma pasta vermelha, o que indicava que o assunto era um caso em curso.

– Sente-se – ofereceu Lena, concedendo-lhe total atenção.

– Estava lendo um inquérito aqui e me ocorreu uma dúvida. Você já pegou alguma coisa que tenha vindo do vigésimo nono distrito?

Lena arqueou a sobrancelha. Kara parecia totalmente detida em sua dúvida profissional.

– Não que eu lembre – respondeu a advogada.

– Ah, tá, tudo bem. É que esse delegado aqui, do vigésimo novo – repetiu – escreve umas coisas tão confusas...

– E...?

– Deixa pra lá – Kara sorriu. – Vou tentar mais um pouco.

Lena continuou encarando a garota, com uma expressão que não ficava muito clara, entre a curiosidade e a incompreensão.

– Só isso?

– Claro. Pode voltar ao trabalho – sorriu de novo, deixando a sala.

Ocupada em uma reunião com um cliente, Lena mal conseguiu almoçar. Voltou para a firma com a mesma cara de poucos amigos e a mesma pulga atrás da orelha. Kara vestia a mesma roupa do dia anterior. Talvez isso explicasse o motivo da garota não ter podido atendê-la assim que Lena chegou.

Com o arrastar das horas, a advogada tinha até esquecido o que queria dela. Já tinha três novos capachos para se divertir dentro do escritório, mas não gostava de pensar que Kara teria uma folga.

Deixar de importunar alguém, quem quer que fosse, ia contra os princípios da doutora Luthor.

Às três da tarde Kara entrou de novo. Com um aceno, indicou que iria até a prateleira, mas Lena continuou olhando na sua direção. Sua ansiedade aumentava a cada instante.

– Precisa de ajuda, pirralha?

Kara parou. Demorou um pouco a formar um sorriso e Lena, que prestava muita atenção nas reações dela, notou isso com facilidade.

– Já que mencionou... Está muito ocupada?

– O de sempre – respondeu Lena.

– Hum. É que com a sua volta, acabei acumulando muita coisa. Estou com vinte e nove pastas!

– Sei... – murmurou Lena, desconfiada.

– Nem que eu trabalhasse vinte e nove horas por dia, daria conta.

Enquanto falava, Kara aproveitou para se sentar diante da mesa de sua chefe.

Analítica, Lena continuou a conversa, porém mudando de assunto:

– Percebi que você lembrou do meu aniversário... De vinte e nove anos.

– Pois é... – Kara estendeu a mão, cobrindo o pulso de Lena. – Eu sinto muito... – lamentou.

– Sente muito?

– Sim... A terceira idade chegando, né? Mas você está indo bem... – Kara continuou falando com expressão de pesar. – Quase nem tem rugas ainda...

– Rugas!?

– Se eu fosse você, desencanava disso, Le. Todo mundo fica velho um dia.

– Tá me chamando de velha?

– Ah, velha nem tanto... Você está mais para uma coroa enxuta – sorriu.

Perplexa, Lena foi obrigada a assistir Kara se levantar e deixar a sua sala, às gargalhadas.

– Você me paga, pirralha! – ainda ameaçou, sem ter certeza de que a estagiária fora capaz de ouvir.

Depois daquilo, Lena não conseguiu se concentrar mais no trabalho.

“Coroa”.

Não bastasse o fato de a advogada já não gostar muito daquela data, Kara tinha despertado outro incômodo. E por se conhecer muito bem, Lena sabia que não conseguiria tirar aquela história da cabeça tão cedo.

Kara, por sua vez, continuou gargalhando na recepção. Confortavelmente, apenas Lucy cuidava do balcão, e Kara aproveitou para se aproximar.

– E aí? Conseguiu dar uma desculpa?

– Aham – Lucy sorriu. – Mas mesmo que tivesse me ferrado, acho que valeu a pena.

O rosto de Kara se coloriu de vermelho. Rapidamente, olhou em volta para se certificar de que continuavam sozinhas.

– Creio que posso dizer o mesmo – piscou o olho.

Com os olhares presos, sorriram ao mesmo tempo. Mas antes que Lucy tivesse tempo para voltar a falar, Kara voltou para a sua sala. Ao invés do trabalho, ocupou sua mente tentando formular uma desculpa para um novo convite. Não tinha mentido, a noite fora ótima, e naquele momento isso era motivo suficiente para querer repetir.

Seu celular tocou quase no final do expediente, e com surpresa, ela atendeu uma grande amiga:

– Alisson?

– Ka! Espero não estar atrapalhando o seu trabalho.

– Você me atrapalhando? Nunca... Tudo bem?

– Uhum. E com você?

– Atolada de trabalho. A chefinha voltou mais cedo das férias.

– Que pena... Vai fazer hora extra?

– Ainda não sei – respondeu Kara. – Por quê?

– Ah, por nada – Alisson riu por um instante. – Como estão as aulas na segunda faculdade?

– Ótimas. E o trote aos calouros, foi legal?

– Poderia ter sido melhor se você estivesse junto. Mas na sexta vai ter festa, com todos os semestres do curso.

– Um bando de futuros desempregados reunidos no mesmo lugar? Jura?

– Aham. Adicione muito álcool e pouca música de qualidade, mas no último volume e eis uma festa do Direito!

– Sensacional! Você vai?

– Ah, não sei – comentou Alisson. – Meu namorado foi viajar hoje... Só volta na semana que vem...

Mordendo os lábios e tendo de segurar o riso de soberba, Kara entendeu perfeitamente bem onde é que Alisson queria chegar com aquela ligação com aparente discussão de papo furado.

– Que pena, né? – provocou.

– É...

As duas riram ao mesmo tempo.

– E então? – a ansiedade de Alisson a fez interromper o silêncio que veio depois do riso.

– Aaam... Bom, você sabe que eu estou cheia de aulas e trabalhos e...

– Corta essa, gata. Se fazer de difícil não vai colar comigo.

Kara riu, com falsa inocência.

– Tudo bem, tudo bem. Onde e quando?

– Hoje. Onde você quiser. Estarei de carro essa semana, eu passo aí pra lhe pegar.

A idéia, embora fosse boa, atrapalharia os planos originais de Kara.

– Aaam... É que... Eu ainda tenho de ver que horas vou sair daqui. Não posso te ligar de casa?

– Não está tentando me enrolar, está?

– Não. Claro que não. Mas eu realmente vou ficar até mais tarde. Aí vou pra casa, me arrumo e ligo pra você. Pode ser?

A contragosto, Alisson respondeu:

– Eu vou querer uma compensação por isso, viu?

Quase sem acreditar que estava fazendo aquilo, Kara respondeu, encerrando a ligação:

– Prometo não decepcionar. Até mais tarde.

Lena entrou na sala exatamente no momento que Kara se despedia da amiga. Em um segundo, foi capaz de decifrar o que se passava na mente da garota, e não perdeu a chance de começar a sua vingança por causa do evento ocorrido horas antes.

– Para quem reclamou do excesso de trabalho há dois minutos, você não parece muito ocupada, Kara...

– Era uma cliente – despistou a garota.

– Sei.

– Tratar clientes com educação e bom humor deve ser coisa das novas gerações. Você precisar passar por uma reciclagem, sabia? – provocou.

De cara feia, Lena se voltou para os outros ocupantes da sala, que riam porque sabiam do conteúdo da conversa de Kara. Ela não tinha se preocupado em usar um volume discreto.

– Marcus e Henry, fizeram o que eu pedi? – quis saber a advogada.

– Já começamos – comentou Henry, animado.

– Isso me parece óbvio, uma vez que pedi o relatório hoje cedo. Quero saber se já está pronto.

Os dois estagiários se olharam, sem saber o que dizer.

– Mas...

Lena virou os olhos, exausta.

– Quanto tempo vão me fazer esperar por algo tão simples?

De onde estava, Kara se meteu:

– Vocês precisam ter em mente que, na idade da doutora Luthor, o tempo voa!

O olhar assassino de Lena não desfez a expressão debochada de Kara. Com a causa perdida, Lena decidiu deixar a sala, arrumar suas coisas, e partir pra casa. Fora um dia cheio e pouco produtivo. Continuar na firma apenas aumentaria sua insatisfação.

Assim que Lena saiu, Kara também arrumou suas coisas. Na recepção, notou com satisfação que Lucy estava pronta.

– Vamos?

Sorrindo, a secretária nova respondeu:

– Vamos!

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