No Words - Girafa

Fraca

Desde o momento em que abriu os olhos pela manhã, soube que seria um DAQUELES dias. Seu corpo fazia questão de alertá-la. A visão ainda um pouco turva, a resistência de seus olhos à claridade que vinha da janela e a dor de cabeça forte denunciavam seus atos da noite anterior. Lembrava de ter saído da gravação cedo, antes do sol se pôr, e ido diretamente para o pub mais próximo de seu apartamento, pronta para festejar uma vida que não merecia parabéns. Lembra de ter insistido para Manu acompanhá-la, mas a baixinha tinha uma sessão de fotos para comparecer à noite, e acabou recusando. Uma pena! Isso deixaria mais álcool ainda para Rafaella. 

Lembra de ter chegado e já passado a mão no primeiro shot de tequila que viu em sua frente, vibrando de alegria quando o líquido desceu queimando por sua garganta. 

Ela amava aquela sensação. Se sentia poderosa toda vez que fazia aquilo, como se pudesse atravessar uma tábua com as mãos só por sentir aquela gostosa sensação. A felicidade do garçom a cada nova dose que ela pedia era óbvia, ele sabia que seus dez porcento aumentavam a cada vez que a morena abria a boca, e por isso a atendia com toda boa vontade do mundo. 

Lembra de ter recebido uma mensagem sugestiva de seu colega de elenco Henrique, chamando-a para sair e riu alto na bancada. Ele realmente achava que os flertes inofensivos que ela lhe jogava tinham segundas intenções? Pobre coitado! Se ele soubesse o quão errado tinha lido suas interações, provavelmente teria vergonha. 

Pensar naquela mensagem, fez Rafa lembrar do porquê de seu riso naquele momento, e sentiu uma risada amargurada crescendo em sua garganta. O quão patético era ela ainda ter esperanças? Depois de vinte e seis anos, ela ainda tinha esperanças, e isso a fazia se sentir como uma garotinha, que acreditava em fadas do dente e em papai Noel, e em como eles lhe recompensariam se ela fosse boa. Ter esperanças a fazia sentir vergonha por ter escolhido atuar até mesmo em sua vida pessoal, e tudo ter sido em vão. 

Desde a pré-escola, os humanos eram ensinados sobre almas gêmeas, e tudo o que ela englobava. Ano após ano, professores explicavam a seus alunos o porquê de cada pessoa ter uma frase escrita em alguma parte de seu corpo, e o que acontece quando se encontra a pessoa cujas primeiras palavras dirigidas a você forem exatamente as que estão perpetuadas em sua carne. 

Rafaella tem eternizada em sua mente a primeira conversa que teve com sua mãe sobre o assunto e o sorriso radiante no rosto da mulher, enquanto explicava detalhadamente a sensação de encontrar sua metade perfeita. 

A partir dali, gastou noites e mais noites imaginando quem seria sua alma gêmea, e porque seu primeiro encontro a faria dizer uma frase tão diferente da dos demais. Era comum encontrar pessoas cuja frase fosse algum tipo de cumprimento, e dificultava a vida de quem as possuía, mas mesmo assim todo mundo encontrava a pessoa destinada a si. Não havia um caso sequer sobre alguém que não possuía uma alma gêmea, afinal o amor não respeita barreira alguma, e todos merecem ter acesso a ele.

Quando seu irmão conheceu sua pessoa, aos 13 anos, Rafaella criou uma grande expectativa sobre a sua. Será que a conheceria cedo assim também? Ou demoraria um pouco mais e esperaria até os vinte? Independentemente da situação na qual o encontro acontecesse, a jovem acreditava estar preparada para quando seu grande dia chegasse, e esperou pacientemente... até que não esperou mais. 

Após 21 anos, Rafa ainda não havia conhecido alguém que dissesse as palavras eternizadas abaixo de seu seio esquerdo, e a cada dia que passava, suas esperanças de que teria o que todos têm diminuía. Com o tempo, a tristeza e a decepção a transformaram em uma garota completamente diferente da menininha que pedia para o irmão repetir sua história em looping. E tudo piorou ainda mais quando, aos 23, passou em um teste para protagonizar uma novela da maior rede de televisão do país. A mudança do interior de Minas Gerais para o Rio de Janeiro só legitimou a transformação da jovem atriz. E hoje já era possível dizer que a menininha, cujo sonho um dia havia sido conhecer sua alma gêmea, hoje era apenas uma vaga lembrança na memória da mulher imponente que seduzia a todos ao aparecer em sua televisão diariamente. Rafaella Freitas havia dado lugar para Rafaella Kalimann.