2 - ritual das noites de sexta

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PRECISAR AJUDAR O irmãozinho da Iara num trabalho da escola foi a desculpa da vez, e eu subo as escadas do meu prédio deprimente com respostas já prontas bem na ponta da língua

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PRECISAR AJUDAR O irmãozinho da Iara num trabalho da escola foi a desculpa da vez, e eu subo as escadas do meu prédio deprimente com respostas já prontas bem na ponta da língua. Entro no apartamento 304 pouco antes do sol ir embora, mamãe sentada no banco do nosso piano de cauda enquanto assiste algum programa aleatório de TV. É óbvio que ela não parece confortável, mas sabe muito bem que não tem o direito de reclamar.

Meus pais decidiram vender o nosso sofá há uns cinco anos, porque não tínhamos espaço para mais um piano na casa, ainda mais para um de cauda. Realmente acharam que valia a pena espremê-lo na nossa sala de estar, como se a porcaria de um sofá não fosse nos fazer falta. Eu sou a única que tem coragem de admitir que isso foi um erro, e um dos grandes. Sinto muita falta do nosso sofá de três lugares, mesmo que eu ame a droga desse piano.

— É a terceira vez só essa semana que você chega tarde, Nina — reclama mamãe, desligando a TV e apoiando os cotovelos na tampa fechada do teclado. — Acho que precisa repensar se entrar na banda da escola foi uma boa ideia.

Faço uma careta, largando a mochila no chão e indo até a cozinha.

Aparecer com algumas mentiras foi necessário desde que comecei a trabalhar na Ardentia, já que mamãe nunca aceitaria uma filha focada em outra coisa que não seja sua futura carreira como pianista e tudo o mais. Eu bem lembro quando Carmela disse que iria arrumar um emprego nas férias na loja de discos em frente ao Ardentia, e papai ficou furioso, mesmo que ela fosse trabalhar com música de qualquer forma. Não quero nem imaginar caso eu precise um dia contar a eles que trabalho em uma locadora, porque eu gosto pra caramba de lá. Não estou disposta a abrir mão de um salário considerável e de todos os meus filmes alugados de graça.

Então, três meses atrás, cheguei em casa dizendo que tinha entrado na banda da escola, o que me permitiria treinar o piano todos os dias. Mesmo com uma cara feia, mamãe aceitou, o que até foi uma surpresa. O único problema é que, teoricamente, os ensaios só funcionam até as três da tarde, e meus pais sabem disso já que precisei trazer um panfleto falando da droga da banda estudantil. E certo que há dias em que eu saio mais cedo da Ardentia, mas há exceções como hoje. Me especializar em desculpas esfarrapadas acabou virando uma necessidade, mas sabe, até que sou boa nisso. Eu bem poderia dar umas aulas pro Seu Arlindo.

— Não é culpa da banda, mamãe — retruco, abrindo a geladeira e começando a preparar um sanduíche. — Mas o Cauê precisava de ajuda em português. Eu não ia dizer não.

— A Iara não podia ajudar sozinha?

Faço outra careta.

— Podia, mas como você sempre diz, duas cabeças pensam melhor do que uma. — Dou uma mordida no pão, torcendo pra que ela não continue insistindo nesse papo. — Qual é, mãe? O Cauê me vê como uma irmã e eu não tenho coragem de dizer não pra ele. E de qualquer forma, a Iara me deixou em casa. Eu tô viva, não tô?

Garotas Rebeldes em CombustãoOnde histórias criam vida. Descubra agora