Observador

637 90 22
                                    



Enquanto o prédio é consumido pelas chamas e as explosões destacam suas forças, uma figura observa e admira. Na verdade existem várias pessoas, mas, diferente delas, o nosso observador admira e ama tudo aquilo. Enquanto todos querem que tudo aquilo acabe, a figura torce para que seu espetáculo particular demore por horas e horas. Ele está do outro lado da rua, em cima de um dos vários prédios daquela quadra, está encantado, fascinado, aquilo o excita até.

O incendiário poderia ter fugido. É arriscado demais estar tão próximo do local do crime, mas ele nunca foi de fugir, pelo menos não antes de admirar sua "obra de arte".

O criminoso está feliz em ver sua obra ganhando força.

Enquanto isso várias coisas passam em sua mente doentia e indiferente, coisas que dificilmente é possível de se entender por alguém comum. Aquele misto de sentimento que no momento parece ser algo particular do observador incendiário parece lhe deixar atônito, aquele é seu momento. Não tem como não se lembrar da primeira vez que incendiou algo, como no dia em que matou seus pais.

Seu olhar é puro fascínio e um sorriso ronda os cantos de sua boca carnuda.

Não importa se naquelas chamas ardem às vidas de pessoas, ele acha que aquelas vítimas têm sorte, pois estão sendo purificadas pelo elemento natural - doentio e indiferente -, ou ao menos é isso que o criminoso psicopata realmente quer acreditar. Não para justificar, pois aparentemente ele não se importa muito com o que pensam sobre seu comportamento homicida. Nada parece ser bom o suficiente para ser poupado por ele ou pelas chamas, como normalmente ele tenta esclarecer para si mesmo em sua mente deturpada e sem emoções, além – claro -, de suas típicas frustrações.

Aquela gente é suja, e não pelo fato de serem mendigos. Sujas de alma; traficantes, cafetões, e pedófilos se encontravam naquele prédio abandonado para saciar seus desejos mundanos e podres. É assim que a figura atenta ao incêndio pensa. Mas nem todos eram sujos de alma, existiam pessoas boas ali dentro, crianças vítimas de todo tipo de abuso, senhoras que só queriam um lugar para morrer em paz depois de verem seus filhos e netos em um lugar digno para morar e passar o resto de suas vidas.

Ele lembra de quando entrou no prédio e caminhava em direção ao último andar. Pessoas implicavam com ele em seu percurso, temerosas que fosse mais um sem-teto para brigar por abrigo e comida. Outros pensavam que ele procurava por drogas ou pelo comércio sexual. Chegando ao penúltimo andar, uma senhora aproximou-se dele com atenção e preocupação, mostrando um sorriso contido e sem dentes, mas simples e de confiança que qualquer idosa podia mostrar em sua fragilidade física.

— Você procura um lugar para ficar, meu filho? — perguntou a gentil senhora segurando a mão de um menino de olhos grandes. — Você me parece um rapaz decente... Talvez perdido, mas parece ser bom. Se quiser, pode ficar em nossa casa, por esta noite. Falaremos com o responsável do prédio e ele pode conseguir uma sala vazia para você, mas só se você for um bom homem, diferente de muitos por aqui. Até porque seria só esta noite.

Ele a encarou e o seu neto que lhe segurava a mão fez o mesmo. A gentileza daquela mulher lembrava sua mãe que também era uma boa pessoa, das poucas que ele já havia conhecido, mas ele tinha que fazer o que na sua mente era o certo, e pela primeira vez em sua vida ele fez algo bom, ou pelo menos era isso que sua mente distorcida acreditava ou tentava justificar covardemente.

— Não, minha senhora. Não ficarei nesse lugar, mas vou lhe dar um aviso: Saia daqui. Isso vai abaixo logo, logo.

O menino olhava do estranho para a avó.

A pobre velhinha não entendeu o "gentil" recado daquele desconhecido; achou que ele se referia ao estado precário do prédio. Mal sabia ela que iria morrer asfixiada e que seu corpo seria carbonizado, destroçado pela queda do prédio e que seu neto não teria partes de seu corpo para um enterro decente.

O estranho seguiu seu caminho a passos largos, chegando ao último andar. Lá, não morava ninguém, o local estava totalmente comprometido; uma boa parte das paredes no chão e uma parte do teto também já havia caído. No local, tinha preservativos usados, manchas de sangue, seringas e cápsulas de cocaína dentre outros vestígios de drogas. Ali também era um tipo de lugar onde os outros faziam suas necessidades fisiológicas, mas para ele não importava mais. Aquele lugar sujo e de cheiro ruim iria sucumbir ao fogo.

O homem estava preparado, abriu sua mochila e de lá pegou três tubos de P.V.C. bem grossos e os encheu de pólvora explosiva. Picou vários pedaços de papel, depois espalhou por todo o espaço garrafas de álcool e querosene. Ele se distanciou e observou, sabia que era necessário, o seu vício gritava para que ele acendesse o seu querido isqueiro, e foi o que fez. Depois, usou um trapo velho para atirar no líquido inflamável espalhado pelo chão. Rapidamente — depois que as chamas ganharam força—, correu descendo os degraus sem se importar com os xingamentos dos moradores com os quais ele esbarrava com pressa e fez o mesmo procedimento com seus equipamentos no térreo do prédio, apenas acrescentando mais querosene e, desta vez, gasolina.

Ninguém mais entraria ou sairia.

Foi questão de segundos. Explosões e gritos ecoaram pelo prédio; o seu espetáculo tinha iniciado.

O observador já tinha preparado seu camarote, e lá se acomodou.

É simplesmente lindo... Depois que o fogo ganha forças e se espalha pelos cômodos atingindo os bujões de gás as explosões são inevitáveis. Ele sorri em êxtase com as explosões que jogam para o ar cacos de vidros de janelas e outros destroços. Rapidamente os curiosos aparecem próximo do local em chamas. Algumas pessoas têm chance de sair do prédio, outras se jogam dos andares de forma desesperadora. Ao cair no chão, algumas conseguem caminhar – pelo menos do primeiro andar e com ajuda de quem estivesse próximo - outras ficam por lá, agonizando.

Outras pulam de andares mais altos e o seu destino é uma morte rápida. Os corpos já se encontram no chão, pessoas gritam das janelas, pessoas gritam da rua, crianças choram. Aquilo é um desespero, mas para o observador é apenas consequências de um espetáculo bem-sucedido e necessário, até porque não se pode fazer uma omelete sem quebrar alguns ovos.

Do alto, o incendiário percebe que ambulâncias, bombeiros e policiais se aproximam. Eles até podem apagar o fogo, mas aquilo iria demorar horas, o suficiente para ele apreciar sua obra. O fogo já se alastra e alcança os prédios vizinhos.

Ótimo.

Os olhos sem reflexo da alma do incendiário captam crianças chorando no braço da mãe que tenta consolá-las inutilmente em meio à dor de perder o pouco que tem. Aquela cena não desperta nada além de tédio e logo ele volta a encarar o que realmente lhe importa. As chamas são gloriosas e o calor que irradia o excita mais, até chega a pensar que a cena que viu segundos antes da mãe e seus filhos lhe valem a pena. Não sente empatia pela dor dos outros, mas sente os olhos arderem em lágrimas de euforia por concluir mais uma de suas "obras".

Bombeiros entram no prédio e conseguem resgatar algumas pessoas. Com seu binóculo, o observador nota que a gentil senhora não saiu do prédio. Ele lastima de maneira fria, mas o que fazer? Ele é frio, talvez por isso goste do fogo.

Quase uma hora depois, ele nota a presença de uma mulher, uma policial usando um rabo de cavalo. Ela está paralisada olhando toda aquela cena. Será que também admira a obra? Questiona-se o frio incendiário, ou apenas está fazendo alguma prece?

Ele abaixa seu binóculo, sua pele negra está suja de cinzas e seu olhar sem emoção está fixo na figura feminina paralisada em frente ao prédio em chamas. Ela parece compenetrada a toda a destruição à sua volta, mas, como se ela sentisse o olhar frio dele, aos poucos ela se vira e dá as costas para as chamas, seu olhar duro varrendo o perímetro à sua frente como se procurasse por algo ou alguém. O colega policial ao seu lado faz o mesmo como se quisesse ver o que ela procura.

Ele sorri ao saber que ela é especial, e ela olha fixamente como se soubesse que ele está ali em algum lugar.

A partir daquele dia, algumas vidas iriam mudar completamente. Aquelas chamas não deixaram só vítimas dentro do prédio, mas fora dele também; algumas estavam morrendo, assim como Betina. Aquela meiga menina não existia mais. E foi assim que esse incendiário matou tantas pessoas. Dentro do prédio, foram trinta e duas, sem falar nas vítimas que viriam através de outros por causa dele como um triste efeito dominó, um tsunami de dor e destruição psicológica.

Os destinos foram cruzados, e não sabe ele que aquela mulher que estava admirando sua obra se tornaria sua caçadora. Ela quer matá-lo... Ou com certeza morreria tentando.

Série Psicopatas Vol.01  - Incendiário (REVISADO).Onde histórias criam vida. Descubra agora