Quatro

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Lúcios sabe que quando peço pra que durma comigo,  não digo da forma maliciosa. Quero dizer realmente dormir, deitar na mesma cama e fechar os olhos, talvez conversar até tarde e rir um pouco. Eu precisava disso, e pela forma como ele aceitou no mesmo segundo, desconfiei que ele também. O sol se punha, os marinheiros recolhiam as coisas do jantar e eu observava o oceano infinito como havia feito por toda a tarde. Meu corpo se arrepiava com a brisa fria que tocava meus braços nus pelo novo vestido simples que Finn havia conseguido pra mim, meus pés permaneciam descalços. Dou uma última olhada para a acalmaria do mar antes de entrar no cômodo mais escuro onde as acomodações ficavam, pronta pra dar de cara com Lúcios recém-saído do banho. E foi o que aconteceu.

Ele estava sentado na beira da cama, nu do tronco pra cima exibindo a linda tatuagem em espirais que começava em um ponto do pescoço e descia pelo ombro esquerdo e pelas costas, algumas com espinhos outras com raios, uma delas com fogo. Elas não terminavam, porque a calça cobria o resto dela. Me aproximo devagar, remexo o cabelo molhado de Lúcios antes de finalmente me sentar ao seu lado.

— O que significa a tatuagem?

Ele olha fixamente para o chão, o olhar perdido no piso velho de madeira escura. Deito minha cabeça em seu ombro e fecho os olhos, concentrada na oscilação de seu peito em cada respiração. Como algo tão simples podia ser tão bom?

— Na verdade é bem simples. Eu tatuo algo sempre que conheço alguém importante, pra minha história ou pra mim. Tatuei minha família.

Observo as espirais desiguais e contorcidas, impressionantemente sincronizadas e bagunçadas ao mesmo tempo. Sem que eu perceba, já estou de pé nas costas do príncipe, meus dedos tocando a espiral envolta em chamas de fogo.

— Você tatuou a mim?

Um calor desconhecido toma conta de minhas bochechas. Sou alguém importante pra ele? Pra história dele? Lúcios pensa em mim?

— Essa é de Kai.

Sua voz quase se apaga. Sinto um nó se formar em minha garganta, desvio a mão de suas costas musculosas e a recolho contra meu peito. Meus joelhos tremem e tenho que me sentar na cama dura pra não cair. Mas que idiota egoísta sou, por não me dar conta do quão machucado o próprio Lúcios estava com a traição do meu irmão. Ele se aproximou, passou meses como melhor amigo de Kai e se apegou muito. Provavelmente estava mais apegado que eu quando tudo aconteceu. Provavelmente se machucou mais. Sinto vontade de me socar pela insensibilidade, mas guardo o ato pra depois. Encaro as costas esculpidas com os ombros caídos.... e a abraço. Abraço as costas de Lúcios sem esperar que me perdoe pela forma como eu o deixei de lado pra sentir minha própria dor, mas ainda sim me surpreendendo quando ele me tira de si. Ele se vira de vagar até que estejamos completamente frente à frente, então pega minha mão com cuidado.

— A sua.— ele diz— É essa.

Ele estica minha mão e arca até a única tatuagem que escapa do seu ombro, que está gravada no peito com outra envolta em espinhos. A tatuagem que ele diz ser minha, é a única colorida, a rosa. Eu mal havia notado ela, a que ficava bem acima do coração.

Com toda a confusão e acontecimentos confusos e embolados desses tempos, eu não havia parado pra entender o porquê do meu coração se acelerar todas as vezes em que chegava perto daquele homem, como sorria igual a uma idiota quando ele falava suas besteiras. Mantive minha mão sobre seu coração, que batia violentamente contra seu peito, exatamente como o meu naquele momento.

— Kali...

Lúcios começa, as bochechas corando e o olho direito... mudando pela terceira vez. O cinza se transforma em ametista conforme ele olha no fundo dos olhos, e tento não demonstrar reações pela forma como ele havia fugido da última vez em que disse que seu olho estava roxo.

— Não quero que pense que sou um hipócrita, ou que não cumpro o que prometo. Porque no começo de tudo eu dizia o que não queria o mesmo que os outros príncipes de você. E era verdade. Eu só queria sair do meu reino e me estabelecer em algum lugar com poder, ganhar do meu irmão seria um bônus. Mas...

O vermelho em seu rosto se intensifica, e de repente ele não parece mais aquele garoto irônico e maldizia que vivia me provocando, agora envergonhado pelo que quer que estivesse tentando dizer.

— Eu me aproximei de você porque gostava do seu jeito. Gostava de como arrancava os sapatos e gostava como seu rosto ficava quando estava irritada. E eu causo muito esse efeito em você...

Soltamos uma risada fraca, as vibrações de seu peito ecoam em minha mão ainda espalmada sobre ele.

— Mas... não sei exatamente quando. Tudo mudou. Eu não me aproximava mais porque queria, mas porque precisava. Doía ficar longe de você, porque doía o tempo todo antes que eu te conhecesse. Eu vivi na dor de perder três pessoas, e sei que existem pessoas que perderam muito mais. Mas... foi o suficiente pra mim. Eu tinha desistido até conhecer você, até perceber que me sentia vivo de novo, não sentia dor...

Sinto minha boca secar e meus olhos marejarem, um nó se forma em minha garganta, e sei que as lágrimas podem vir a qualquer momento. Não retiro a mão de seu peito, e nem ele tira a mão da minha.

— Eu percebi que preciso de você Kali, eu estou apaixonado por você. Mas meu maior medo é te perder, e sei que precisa do príncipe mais forte pra sua segurança. Então, quando escolher, por favor, só me diga que ainda podemos ser amigos.

Lúcios força um sorriso, que acaba por fazê-lo derramar uma lágrima. Sinto nitidamente seu coração se comprimir em seu peito, a cada palavra final.

— Lúcios

Forço-me a dizer por cima da garganta dolorida, e as lágrimas insistentes, arrastando o corpo pra mais perto do dele. Quando o espaço entre nós não é maior que um palmo, e nossas respirações se unem em uma, ele quebra meu coração:

— Não se atreva a colocar meus sentimentos acima de sua segurança.

Mais lágrimas saem pelos seus olhos, e a certeza dele sobre si mesmo se estilhaça no chão. Quase consigo sentir seu orgulhos ferido, indignada pela mudança repentina.

— Não se atreva a colocar meus sentimentos de lado porque você me acha fraca.

Sinto vontade de abrir uma mão envolta em chamas, mas seu sussurro ecoa quase tão forte quanto um grito:

— Seus sentimentos?

E aquilo é tão genuíno, tão forte quanto um soco no estômago, o que sinto é tão intenso... que apenas envolvo seu pescoço com as mãos e puxo seu rosto. Nossos lábios se tocam, e mesmo com os narizes escorrendo e as lágrimas nos banhando, é o melhor beijo que já tive na vida. Quando nós afastamos, estamos arfando, mas consigo dizer:

— Eu escolho você.

A linhagem do fogoOnde histórias criam vida. Descubra agora