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Eu vestia meu vestido mais negro, tão escuro como minha alma ficara, depois de perdê-lo. O corpo dentro da caixa de madeira, já não podia me trazer paz e calor. Não poderia bagunçar meu cabelo, e fazer piadas sobre a cor dele. Eu o amava, e o perdi. Já não tinha lágrimas no corpo, a boca permanecia aberta por conta do nariz completamente entupido. Meus olhos nublados encaravam o caixão de madeira com a tampa aberta, focados em seu rosto repleto por nossas chamas. Era nosso ritual quando alguém que amávamos muito morria: colocávamos a pessoa amada em um caixão de madeira clara, e a jogávamos em um rio. A correnteza a levava, e as chamas da família consumiam o corpo. A fumaça se via por toda Kibtaysh. Seria lindo se não fosse trágico.

Meu coração se comprimiu mais uma vez. Encarei o príncipe mais uma vez. Seu rosto estava quase irreconhecível. Seu corpo já havia sido tomado pelas chamas, carbonizado de fora para dentro. Estávamos todos reunidos ao redor do rio, inclusive as irmãs de Jasper, Emory com uma barriga imensa, e meus irmãos, levemente recuperados. Seus olhos ainda estavam com aquele tom de morte, mas pelo menos eu podia abraçá-los mais uma vez. Ao contrário do homem que estava flutuando à alguns metros de nós. O observamos até o sol se pôr, e o caixão desaparecer pelo rio, com minhas chamas e minha metade dentro dele.

A caminhada de volta ao palácio foi pacífica. Exceto pelas fungas aqui e ali da corte real— que eu inclusive pensei ter morrido— , ninguém proferiu nem uma palavra sequer. Achei bom. Não estava afim de discutir com alguém minha dor, ou me abrir pra essa baboseira de se sentir melhor. Eu estava péssima. Queria estar péssima. Sentir meu coração quebrado era o que me fazia ter esperança. Porque pelo menos eu sentia algo.

Depois que ele morreu, a ficha não caiu. Fiquei encarando o corpo espatifado no chão, me perguntando onde eu havia me perdido. Porque tudo havia dado errado. Levei um tempo pra perceber quele não iria sorrir pra mim. Não iria concorrer para um trono, ou me criar apelidos fofos e irritantes. Eu não podia mais correr para seu quarto e encontrá-lo ali, pois ele não estaria ali. Eu quis voltar no tempo, e apagar tudo aquilo. Mas acima daquilo tudo... Kai havia morrido. O país Dourado estaria seguro por mais algum tempo.

Respirei bem fundo antes de escancarar as duas portas da enfermaria, local para qual corri, assim que tudo acabou. Lúcios. Ele estava sendo cuidado pelos dois curandeiros mais famosos e habilidosos de todo o reino, ambos concentrados o tempo todo no príncipe. Sua ferida já estava fechada, a adaga removida com cuidado pelos curandeiros de cabelos grisalhos. Apenas um está presente quando adentro o local, estranhamente mais frio que o resto do palácio. Esfregando os braços para conter as tremedeiras, me aproximo da maca devagar.

— Como ele está?

Analiso seu peitoral forte e nu, subindo e descendo lentamente, esticando as espirais negras tatuadas. Um lençol fino cobre de sua cintura para baixo, e tenho que me esforçar para não estremecer ao ver a linha grossa costurada à seu peito . Um pouco abaixo do Brito na verdade, onde o corte começa.

— Sobrevivendo. Pode dormir por mais alguns dias, quase esgotou sua magia tentando se proteger. Se não fosse sua parte de herdeiro negro...

— Ele estaria morto.

Completo. O homem não precisou afirmar para que eu soubesse. Aquele feto morto acabou salvando a vida de Lúcios afinal de contas. Agora era só... esperar? Por quanto tempo? Meu corpo já estava exausto por não tê-lo por perto, minha mente se desgastava em pensamentos ansiosos. Nunca senti tanta falta dele na vida. Nunca senti tanta falta de alguém assim.

— O príncipe Finn manteve o quarto resfriado, para que o corpo dele aguentasse um pouco mais.

Concordo com a cabeça, os olhos ainda presos em Lúcios. Duas horas se passam, mas nada acontece. Ele permanece com os olhos fechados, a pele pálida, e a mão imóvel, mesmo com a minha sobre ela. Decido que não fará diferença ficar ali, então me retiro para encontrar os outros príncipes. Descubro que esse objetivo se cumpriria mais rápido que o esperado, quando avisto absolutamente todos os príncipes e princesas na frente da enorme porta rosa de meu quarto.

— O que fazem aqui?

Jasper e Finn se entreolham, mas Emory parte para a ação. Ela se aproxima, e apesar da imensa barriga que carrega, me aperta em seus braços. A grande melancia não incomoda, chega a ser aconchegante. Quero abraçar aquele bebe, aquele fio de esperança no mar de tempestade. As lágrimas começam a cair novamente, justo quando pensei não mais existirem. Meus joelhos quase cedem, mas sou envolvida por mais braços. E mais, e mais. Quando abro os olhos marejados, dou com toda uma equipe da realeza demonstrando seu amor e cuidado. Somos uma família agora. Não importa o que acontecer daqui para frente, nada pode mudar isso. Mas meu coração tropeça, porque faltam dois membros. Edwin e Lúcios.

— Tem uma coisa, que você precisa saber.

O abraço ao meu redor começa a ceder, Emory se afasta e finca seus olhos de noite nos meus. Espero que ela continue.

— Kai era errado, mas criou uma personalidade só pra te fazer sentir segura. Eu não acredito nem por um segundo que essa personalidade era totalmente falsa.

Um nó se forma em minha garganta, conforme ela continua.

— Quero que saiba Kali, a parte negra dele era maior, mas ele amava você. Muito. E mesmo morto, você sempre vai ter uma parte dele. Aqui.

Ela diz apontando para meu peito.

— E aqui.

Ela finaliza, apontando para a própria barriga.

A linhagem do fogoOnde histórias criam vida. Descubra agora