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Costumavam me chamar de chama selvagem. Porque segundo Barduc, eu era uma chama-viva que ganhava forma sozinha, e não se apagava facilmente. Kai era chamado de fogo azul, porque apesar de menos visível, quando se dá conta de sua presença já é tarde demais. Senti na pele a diferença entre nós quando me coloquei à sua frente, o corpo todo preparado para liberar meu fogo. Ele segurava a pedra de ônix, e nossos irmãos quase sem vida esperavam atrás de nós . Ele havia sugado poder de todos eles, não seria eu contra Kai, seria eu contra Kai, Zander, Arlo, Alex, Owen e Vladmir.

Porém, mesmo com dúvidas e medo amaçando tomar conta, fiz sinal para que os príncipes se afastassem, e me aproximei ainda mais do meu irmão gêmeo. Vento chicoteava meus cabelos, prova do conflito interno que Lúcios provavelmente vivia, ao me permitir lutar sozinha. Mas eu seria forte. Finquei os pés no chão, e ergui os punhos, um desafio silencioso. Eu acabaria com ele usando as mãos, sem nem sequer precisar do fogo. Kai era forte. Mas não tão forte quanto Zander ou Arlo, viver dentro de bibliotecas trazia essa desvantagem. Mas eu... havia treinado por anos com ambos, podia dar cabo de Kai sem muito esforço. Ele podia sugar a vitalidade e poder dos meus irmãos, mas experiência de luta... isso tinha que ser vivido.

Um círculo de fogo se fechou ao nosso redor, chamas crepitando no chão, a geométrica impecável. Era quase impossível distinguir os rostos de preocupação do outro lado das chamas, mas a tensão era palpável. Como sabia de sua desvantagem, Kai avançou. Ele carregava uma adaga de pelo menos trinta centímetros, afiada refletindo a luz dourada do céu. A adaga não me feriu, sequer chegou perto. Desviei do objeto com facilidade, deferindo um golpe na lateral de suas costelas como punição. Um grunhido, seu primeiro som de esforço ao se colocar de pé. Então um chute no ar, poeira voando até meus olhos. Kai me cegou, e quando eu começava a quase enxergar, já era tarde. Minha bochecha encontrou o chão com um baque forte, quando minhas pernas cederam com seu chute, meu tórax foi pressionado contra o chão por seu peso. Arfei com os olhos cheios de lágrimas, mas o ar não alcançava meus pulmões.

Me sentia esmagada, dilacerada, a garganta queimando pela areia seca que a invadia. Fiz força com meu próprio peso, debati as pernas e braços em uma tentativa inútil de sair dali. Quando meus olhos já não viam apenas borrões, percebi o porquê. Kai estava ajoelhado acima do meu pulmão, sua adaga posicionada contra minha garganta.

— Eu só queria ser tudo o que você sempre foi. — Seu tom não era rancoroso ou melancólico... era nostálgico.— E olha só pra mim! — Kai aponta para o próprio peito, estufando o mesmo para provar o argumento.— Absorvi todos os meus irmãos, agora posso ser como você. Não. — Ele se corrige— Sou melhor.

Sinto a minha mente girar já pela falta de oxigênio, mas estou consciente o suficiente para sentir a lâmina gelada de sua adaga se apertando ainda mais contra minha pele. Seria esse o fim? Estaria tudo acabado? Kai cuidaria disso. Kai destruiria Kibtaysh, e meu povo junto. Nosso povo. Um pouco injusto morrer assim, sufocada e esfaqueada. Ninguém saberia qual dos dois havia de fato me matado...

Não.

Não me permitirei morrer assim, não com o destino do meu povo em jogo. Não depois de Lúcios ter confiado em mim, depois de uma vida em que fui protegida. Por anos me protegeram, era minha vez de proteger a todos. Lúcios acreditava em mim, Edwin e Finn também. Jasper... príncipes poderosos que acreditavam em mim. Não só acreditavam, como apostavam... meus príncipes... meus amigos. Por eles, eu não permitiria, por eles, por Kibtaysh, por Barduc, Isla e Ravi, por cada um de meus súditos.

Foi por cada um deles que eu queimei em chamas, abrindo cada poro do meu corpo para o fogo que agora emanava de mim. Já não havia cabelos, corpo ou roupas, tudo era fogo. Que Kai queimasse.

Ele de fato não teve muito tempo de escolha, reagiu mais rápido que o normal, saindo de cima de mim em um pulo. Mas ainda assim lento demais para minhas chamas. Quis guardar sua expressão assustada em um retrato quando me levantei, mais forte que nunca, já caminhando em sua direção. Foi indescritível a sensação de apagar suas chamas ao nosso redor, para revelar minha verdadeira forma para os príncipes ali admirados. Todos se impressionaram, mas não tiveram tempo de assimilar Kai de joelhos à minha frente.

— Você sempre foi melhor que eu Kai. Até escolher o caminho errado.

Eu flutuava, meus pés não tocavam no chão, meu corpo brilhava. Em dourado, vermelho e um toque de azul. As cores das chamas. Kai se curvou, submisso e nitidamente arrependido. Os olhos marejados, quase me fazendo vacilar.

— Me desculpa! Me desculpa Kali!

Eu não podia. Eu simplesmente não moria matá-lo, não depois da forma como ele me olhou. Ainda era meu irmão, ainda era minha metade. Acima de tudo, meu sangue, também fazia parte da linhagem do fogo.

— Eu perdôo você Kai, mas pagará por seus crimes. Vai apodrecer na prisão, não verá o sol novamente em sua vida.

— Eu sugarei seus poderes para garantir isso.

Lúcios avisa. Em apoio. Não importava pra ele, o quão irracional deixar meu irmão vivo pudesse parecer, ele me apoiaria. Foi esse apoio que me fez acalmar, cedendo as chamas até cessar, meus pés encontrando o chão com suavidade. Lúcios foi ágil em oferecer sua camisa surrada e enorme em proteção, já que minhas roupas haviam sido carbonizadas. Serviu como um vestido curto, o tecido alcançando meus joelhos. Todos nós formamos um semi círculo, de braços entrelaçados em gratidão. Havia acabado. Tudo, as lutas, o medo, a dor... olhei para cada um dos príncipes ali reunidos, e agradeci, o melhor que pude. Encarei um a um, mas quando chegou a vez do príncipe ao meu lado, o amor da minha vida, não encontrei seus olhos tão familiares. Porque por algum motivo ele estava se movendo, saindo do abraço.

Lúcios correu para se colocar contra minhas costas, mais rápido do que minha mente pode captar. Quando dei por mim novamente, ele estava caindo, seus joelhos se chocando contra o chão, uma adaga de trinta centímetros enterrada em seu abdômen, mais sangue do que eu poderia assimilar jorrando por entre seus dedos.

Meu coração se estilhaçou em mil pedaços. Lúcios estava morrendo.

A linhagem do fogoOnde histórias criam vida. Descubra agora