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Sempre invejei os pássaros. Olhava para minhas pernas fracas e os pés doentes me perguntando se algum dia conheceria a sensação de me deslocar sem tocar o chão. Sem a ardência, sem a exaustão. Quando eu tinha doze anos, vi uma apresentação de um homem que voava. Na época eu não entendia como efeitos especiais funcionavam, apenas relacionei a levitação com os fogos de artifício, então comecei a crer que também poderia fazê-lo. Subi na árvore mais alta nas redondezas do castelo, e me joguei, as mãos para baixo soltando rajadas fortes de fogo. Alexander, por sorte estava passando por perto, e me pegou no ar antes que eu atingisse o chão. O que ganhei? Uma bronca interminável de meu pai, e castigo sem poder sair. Desde então meu sonho de voar havia morrido. Até aquele momento...

Naquele momento, agarrei as lapelas da camiseta de Lúcios, meu estômago se comprimiu até ficar do tamanho de uma noz. Minhas mãos suavam frio, ameaçador escorregar pelo tecido grosso da roupa, minhas pernas balançavam no ar. O vento chicoteava meu cabelo para meu rosto, meus olhos permaneciam fechados com força, a boca se tornara uma linha fina.

— Kali.

Lúcios sussurra contra meu ouvido. Subitamente percebo o quão firmes são seus braços ao redor de mim, o quão impossível seria que ele me soltasse.

— Estou aqui. Não vou te deixar cair.— Balanço a cabeça em concordância, sei que não está mentindo.— Abra os olhos princesa.

Ouvir meu título ser pronunciado por essa voz, é uma das melhores coisas. Cresci sendo chamada de princesa por todos, a única princesa de Kibtaysh. Mas quando Lúcios falava... parecia seguro de que eu havia realmente nascido para aquilo. Abri meus olhos devagar, mas não ousei olhar para baixo. Encarei o príncipe que me segurava, e senti nossas respirações se misturarem devido à proximidade de nossos rostos. Meu corpo formigava, eu não tinha certeza se pela altura que eu podia perceber pelas árvores, ou pelo intenso corpo grudado ao meu levitando no ar.

— Não vou te deixar cair Kali. Mas não precisa olhar para baixo se não quiser.

E então eu estava voando. Entendi a diferença em levitar e voar assim que o ar fugiu dos meus pulmões, o aperto entre mim e o príncipe se diminuindo. Depois de poucos segundos, reuni coragem e olhei para baixo. Apesar dos olhos quase secos pelo vendo, foi incrível, provavelmente a melhor escolha que fiz. Estávamos a alguns metros do chão, não muito acima das árvores médias, ainda encobertos pelas mais altas. Avançávamos com graça, Lúcios voava com a certeza de um cocheiro em sua carroça. Era lindo. Avançar pelo ar, com o corpo livre... a partir daquele momento, aquele era o sentido de liberdade pra mim.

Levaram alguns minutos até que avistássemos a linha divisória entre Elliwe e Rithan, o começo da primavera. Mas o palácio era o ponto de encontro, então não ousamos parar. Eu nunca havia visto o palácio de Lúcios, era o único reino que eu não havia visitado quando pequena. Mamãe dizia que cada reino tinha uma capacidade predominante, todos menos Rithan. Em Bulhart, era a inteligência, em Elliwe, a bondade. Em Own era a grande capacidade de silencio, o que os auxiliava em missões de espionagem, e em Kibtaysh era a facilidade de comunicação. Mamãe nunca conseguiu definir o que exatamente era o dom dos Rithanicos, eles eram um enigma para ela. Meia hora se passou, mas de alguma forma Lúcios não parecia cansado. Ele sorria. Talvez a parte menor maravilhosa de voar nos braços dele, era não poder conversar para passar o tempo. Ele se mantinha concentrado, e eu tinha medo de nós fazer cair por conta da minha necessidade extrema de conversa.

Mais uma hora se passou, e eu não tinha nenhuma inspiração para olhar pro chão com Lúcios a poucos centímetros de mim. Queria beija-lo. Talvez de alguma forma, por um segundo ele tenha lido minha mente, porque me encarou e sorriu. Aquele sorriso sem mostrar os dentes, um leve puxar de lábios no canto da boca. Foi quando eu soube. Em todo aquele tempo, como não havia percebido antes? Lúcios mudava de forma, mudou de forma para me alcançar naquela noite de inverno, mudava de tom de voz para me provocar. E como? Não seria difícil se ele pudesse ler mentes. Lúcios lia mentes?

Não tive tempo de perguntar. Porque assim que pousamos, o castelo da família dele invadiu minha visão. Era imponente, majestoso, mais lindo que qualquer outro no país dourado. Tinha torres em sua composição, pontudas, altas e majestosas, era completamente escuro. E de alguma forma, aquilo o tornava ainda mais aconchegante. Inscrições e espirais vermelhas se formavam por todo o castelo, nos portões e nas janelas, nas paredes e na porta de entrada. Era sem dúvida um castelo negro, para o herdeiro negro que deveria ter nascido vivo.

— Seu pai está aí?

Parte de mim sinta se sentia desconfortável por entrar em um lar onde o pai havia ameaçado a vida dos filhos. Eu sei que não era nada fácil para eles.

— Eu sei o que está pensando Kali, mas ele não nos fará mal, não depois de como Edwin o deixou.

Certo. Se eu tinha alguma dúvida de que Lúcios podia ler minha mente, ela fora cessada com aquela frase. Ele mesmo disse! Sabia o que eu estava pensando. Literalmente. Me concentrei e pensei em uma palavra, aleatoriamente... pão. Foi a primeira coisa que me veio à mente. Pensei nela e a deixei ecoar pelas paredes do meu crânio, tão concentrada que mal notei os passos em nossa direção.

— Demoraram muito, já estava me cansando.

Lúcios zomba de Finn e sua dupla, que caminham graciosamente até nós. Austin parecia enjoado, Finn parecia cansado.

— Como?

Me vi perguntar. Finn limpa poeira invisível da calça antes de esticar as mãos, alongando-as conforme explica.

— Arranjei uma caixa de madeira. Coloquei minha dupla nela, e então nos impulsionei através de um fio de gelo por toda a floresta. Ficou mais fácil depois que saímos de Elliwe.

Duas horas se passaram, e ainda não havíamos sequer avistado a presença de Jasper e Damian. O sol começou a se por, então Finn e Lúcios cogitaram voltar para buscá-los. Foi quando ouvimos. Os ruídos. E então um grito, gutural e animalesco em pura agonia. Pouco tempo depois, duas figuras surgem da floresta, Jasper coberto de sangue carmesim, segurando Damian, desacordado em seus braços.

— Corram! Para o castelo!

A linhagem do fogoOnde histórias criam vida. Descubra agora