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Nas poucas reuniões que me lembro de acontecer entre todos os reinos, os jantares eram a melhor parte. Minha mãe sempre trançava meus cabelos  bem grudados não cabeça pra que eu impressionasse os príncipes com a beleza de meu rosto jovem. Mas isso não chegou a acontecer, porque eu sempre travava em meu quarto de vergonha, a trava me impedia de caminhar até o salão de jantar. Minha mãe, como a compreensiva que era, ficava me segurando nos braços em meu quarto enquanto os adultos e pequenos príncipes jantavam e conversavam alto. Depois do jantar as crianças saiam pra brincar, mas eu permanecia em meu quarto olhando para o quintal pela janela, enquanto os príncipes e a princesa da minha idade corriam descalços pela grama. Por muito tempo pensei que fosse minha timidez que me impedia de conhecê-los, mas não era. Nas noites em que minha mãe era necessária, eu ficava sozinha, olhando pro teto florado cor-de-rosa imaginando como seria ser normal. Foi em uma dessas noites que Jasper invadiu meu quarto, nessa época sem cicatrizes em seu rosto. Me lembro de brincarmos um pouco, e quando ele foi embora, minha mãe nos surpreendeu. Pensei que brigaria conosco, mas ela apenas o puxou gentilmente para longe de mim e sussurrou algo em seu ouvido.

E foi nesses jantares que meu irmão havia ganhado a amizade e confiança de todos, foi naqueles momentos em que se aproximou de Lúcios e Austin, formando uma amizade profunda que nem eu percebi. O infame mentiroso podia ser tudo, menos burro.

— Esta me dizendo, que Kai, aquele garoto gentil que só queria o bem de todos, é o herdeiro negro?

Austin estava indignado demais para falar, mas Damian perguntava por ele. Edwin espalmou sua mão em minhas costas como apoio, compreensão e amizade.

— Ele mesmo nos confessou.

— E como nos prova que você não é a herdeira negra? Pelo que sei o herdeiro negro pode controlar pessoas.

Toda a admiração de minutos atrás se torna desconfiança nas palavras de Damian, consigo sentir sua dúvida dos olhos.

— Eu sou a Herdeira de Kibtaysh, decida no que acredita, mas meu irmão manipula a todos direitinho.

Controlo a voz para que não se altere, certa emoção me invade as veias. E quando penso que acabou, que consegui convencer os príncipes, Austin dispara:

— E quem disse que você não manipulou meus irmãos pra caírem de amor por você? Pra acreditarem no que quer que conte pra eles?

Cerro os dentes com força, mas não contenho o impulso que me ergue do sofá nem pela mão de Edwin em mim, incapaz de me puxar de volta. Engulo o nó de choro que se forma em minha garganta, e fecho os punhos buscando firmeza, controlo os olhos marejados conforme me dirijo aos irmãos ainda sentados sem expressão declarada.

— Se querem um duelo ou algo assim pra provar meu poder, fiquem a vontade. Mas não sejam burros o suficiente pra deixar que essa desconfiança idiota sirva de desculpa pra não ajudarem na guerra que pode definir o destino de todo o continente dourado. Como sabem o herdeiro negro não pode gerar nenhum tipo de elemento, seus poderes são outros, então me testem, me furem ou me rasguem de dentro pra fora, como preferirem pra confiar em mim. Mas não neguem ajuda ao meu povo.

Meu peito sobe e desce com dificuldades, as lágrimas rebeldes finalmente escorrem por minhas bochechas . Tento erguer as mãos para secá-las, mas Lúcios surge e me pega em seus braços. Não me importo mais com seus irmãos, a desconfiança ou o poder que teremos amenos, não me importo com nada além daquele cheiro invadindo minhas narinas. A segurança me preenche, antes mesmo que Lúcios me leve para fora da sala, para fora da entrada, em direção à floresta, até a natureza. Ainda abraçados, consigo ouvir as vozes de Edwin e Finn indignados, explicando o quanto eu havia sofrido por causa de Kai. Eles ocultaram os detalhes, mas em geral confessaram como Kai fazia meu corpo travar em momentos importantes, como a tortura emocional funcionava me fazendo pensar que a culpa era minha. Já estávamos longe pra escutar o resto da conversa, mas algo me dizia que os irmão de Lúcios provavelmente não me veriam de mesma forma.

Quando já estamos na mata fechada, Lúcios se afasta de mim o suficiente para agarrar meu queixo com a ponta dos dedos, olhando fundo nos meus olhos com toda a intensidade. Por um instante, senti meu corpo inteiro estremecer, porque pensei que me tomaria ali mesmo, entre os galhos mirrados e as folhas secas. Mas então ele se ajoelhou diante de mim, fazendo o que já estava se tornando uma das melhores coisas nele... retirou meus sapatos, um depois do outro.

— Só me ajoelho pra você.

Ele me lembra, já se levantando para ficar muito mais alto que eu.

— Eu sei

Minha voz se torna um sussurro, trêmula e incerta diante daquele príncipe tão lindo. Suas feições firmes se suavizam conforme seus olhos correm pelo meu rosto, e como se um botão tivesse acionado, seu olho direito deixa de ser cinza, e como tinta dançante jogada na água, o roxo surge.

— Lúcios.

Ergo minhas mãos até seu rosto , passando os dedos pela barba por fazer. Seguro-o entre minhas mãos, sentindo a pele áspera em meus dedos finos. Encaro aquela prova viva de seus sentimentos, sentindo meu coração se estilhaçar só com a lembrança da tortura de seu pai, a crueldade ao ponto de arrancar os sentimentos do próprio filho. Em seguida, sinto meu coração se reconstruindo, diante da prova de seus sentimentos desabrochando, feliz por cada memória e momentinho que Lúcios me fez guardar. Um sorriso escava de meus lábios juntamente com as lágrimas, então puxo seu rosto pra mim, colando nossos lábios. Porque não sei se posso expressar em palavras o que sinto agora. Me afundo naquele beijo certa de que o mundo poderia se desmanchar em mil pedaços, que eu sequer ouviria. Kai poderia deferir um golpe contra meu coração, que ele continuaria batendo por Lúcios. E talvez tenha sido essa certeza, que fez minha boca se afastar da sua o suficiente pra dizer:

— Eu amo você.

A linhagem do fogoOnde histórias criam vida. Descubra agora