Dois

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— A natureza envia um herdeiro negro pra cada geração de herdeiros, e quando o feto não vinga, ela tem que mandar uma segunda vez. Seus pais não perceberam que Kai era o herdeiro negro, porque você era a herdeira de Kibtaysh, mas em geral quando o herdeiro negro nasce, todos ao redor percebem.

Lúcios respira fundo e olha para o irmão, e com um aceno de cabeça indica para que Edwin continue. O príncipe se senta com as costas apoiadas contra um tronco, e acompanho seus movimentos, assim como Lúcios, que se senta ao meu lado.

— A primeira gravidez da nossa mãe não vingou, ela era jovem demais, e seu corpo ainda não estava preparado. Mas assim que o feto morto nasceu, meu pai sentiu... o poder. Então ele dissecou o feto e usou o DNA em pesquisas malucas, experiências e coisas assim. Ele conseguiu com esse DNA, implantar poderes em si mesmo, mas não como os do herdeiro negro. Pela convivência e proximidade com nossa mãe, foi o poder dela que o DNA do feto passou pra ele. Mas então ...

— Eu nasci. — Lucios interrompe, — E ele ainda tinha pedaços do... feto quando isso aconteceu. Ele injetava em mim, e fazia testes, pra ter certeza de que meu corpo absorvia... o corpo do meu irmão.

Me encolho só de imaginar, a repugnância das ações daquele homem, usar um pobre bebê morto pra fortalecer sua própria linhagem.

— Mas como eu já tinha poderes, demorou um pouco mais pra que o poder negro realmente... penetrasse minhas entranhas, ele teve que usar todo o resto do feto.

Antes que perceba, já estou completamente abinhada contra o peito de Lúcios, ao ponto de poder sentir cada momento em que suas batidas se intensificam, cada vez em que sua respiração falha em meu pescoço.

— Então quando Damian nasceu, ele... me fazia sangrar, pra unir meu sangue com o dele. Então veio Austin, Edwin e Cora. Por sorte minha irmã foi ensinada desde cedo que precisava ser uma princesinha linda pra se casar com um principezinho lindo. Então só eu e meus irmãos nos sujeitamos ao "tratamento".

Edwin se ajeita no próprio lugar e se inclina pra frente com uma expressão sombria cobrindo o rosto.

— Lúcios foi o que mais sangrou, consequentemente foi o que mais obteve domínio do poder e resistência à dor. Só eu perdia o controle. E quando isso acontece, é como se nosso irmão morto se apossasse do meu corpo, como se o feto tivesse crescido dentro de mim por todo esse tempo. Não sabemos como o poder pode reagir à uma luta real contra Kai. Não fazemos ideia.

Retiro os sapatos e mostro os pés para os príncipes, algo que nunca na vida havia feito antes. Com o coração retumbando forte no peito, levanto as solas e massageio a grossa fileira de cicatrizes que se formavam de uma ponta a outra da base do pé. O pé da princesa que deveria ser lindo e delicado, na realidade era um pedaço em frangalhos. Mas já que estávamos compartilhando traumas...

— Quando eu tinha doze anos, em um dos meus passeios pela floresta, eu caí. Caí de uma árvore que ficava na beira de um penhasco, coberto por névoa. Eu caí porque travei no lugar, Kai foi buscar ajuda. Agora sei que foi ele quem me fez travar e despencar pelo penhasco, o corpo tão duro que não pude me proteger dos espinhos rasgando minha pele. Por algum motivo, caí de pé em uma base não tão baixa, quebrei as pernas e machuquei gravemente os pés. Mas Owen demorou muito pra me achar, quando me achou, a magia dos curandeiros conseguiu curar minhas pernas, mas não meus pés, não completamente.

Um lampejo de compreensão atravessa o olhar de Lúcios, no momento em que percebo que Finn havia escutado tudo. Desde quando eu não sabia, mas já que estávamos formando alianças...

— Por isso você sempre tira os sapatos... o piso gelado alivia.

— Sim. A grama também. Pelo menos em Kibtaysh costuma ajudar.

Finn se senta também, o que indica que ou conseguiu muita coisa com os moradores locais, ou não conseguiu nada. Seus ombros se enchem de tensão quando Edwin se volta para ele:

— Algum trauma pra contar?

O tom de Edwin é brincalhão, quase como ironia, mas o olhar do profundo azul do príncipe nos deixa tensos e receosos. Quem diria, que o príncipe lindo e bem alinhado com a família perfeita havia sofrido alguma vez na vida?

— Meu irmão mais velho abandonou a possibilidade do trono por um amor. Ele fugiu com ela e desde então nunca mais o vimos. Eu tinha só três anos na época, mas meu pai decidiu que eu seria o príncipe que ele queria, o herdeiro que o reino precisava. Mesmo que isso significasse... chicotes com pontas de ferro.

Já estamos completamente petrificados pela história, mas mesmo assim, Finn se vira de costas apoiado nos joelhos, e abaixa a camisa desabotoada o suficiente para que pudéssemos ver as cicatrizes espessas em alto-relevo decorando suas costas, como linhas cruéis envolvendo um corpo tão lindo. Quando Finn se senta novamente, o silêncio se torna algo confortável, bem-vindo. E de repente não existe mais herdeiro negro, só quatro amigos confessando suas dores. Por algum momento existem apenas minhas lágrimas, as fungadas fortes de Lúcios e Edwin, e o choro baixo de Finn. Olho para cada um daqueles príncipes com a certeza intacta de que vamos ganhar a guerra. Vamos ganhar porque eu os amo demais, e não suportaria a ideia de perdê-los. Vamos ganhar porque estamos quebrados o suficiente pra saber como quebrar alguém muito bem. Como se lesse meus pensamentos, Lúcios murmura alto o suficiente pra que todos nós ouvíssemos:

— Estamos quebrados. Todos nós.

Finn estende papéis indicando passagens de barco no exato momento em que um sorriso se abre em meu rosto. Edwin enche o peito e declara:

— Aos quebrados. E ao que ainda podemos concertar.

A linhagem do fogoOnde histórias criam vida. Descubra agora