Meus joelhos encontraram o chão de terra seca, se chocaram contra ele com força. Um vácuo se iniciou em meu peito, ao passo que um zunido começava a agredir meus ouvidos. Alguém estava gritando muito alto. Meus olhos correram aquele corpo inerte, meus braços não paravam de puxa-lo para mais perto. Mais e mais perto. Não movi a adaga, minhas mãos tremiam demais para qualquer movimento brusco. Eu não conseguia respirar, a garganta ardia. Provavelmente o grito era meu. Tudo ao redor se tornou um borrão em lágrimas, menos aqueles cabelos negros que agora eu agarrava, com meus dedos manchados de sangue. Aquele cheiro no qual eu mergulhava, desesperada com o medo de que aquilo tudo passasse em segundos. Me joguei por cima do corpo inerte de Lúcios, completamente alheia ao que acontecia ao redor. Kai poderia me matar naquele momento, eu não me importaria.
— Kali...
Sua voz era menos que um sussurro, um sopro no vazio, viajando direto até meus tímpanos. Eu mantinha meu ouvido colado em seus lábios, os ruídos externos eram altos demais para que eu o ouvisse com nitidez.
— Estou aqui.
Minha voz estava esganiçada. Despedaçada como o resto de mim. Tentei desesperadamente retirar a adaga de seu corpo, mas minhas mãos suadas escorregavam pelo cabo gelado. Encarei a insígnia na ponta, e foi como reviver um de meus maiores traumas. As imagens me voltaram uma a uma, os traumas tomando forma e relação entre os momentos passados e atuais. Me lembrei de muitos anos atrás, quando Kai ganhou uma adaga de aniversário, com um leão gravado na ponta.
Mamãe brigou com papai, ameaçou dar-lhe umas palmadas, alegando que Kai era jovem demais para objetos afiados. Em resposta, papai jogou fora o arco que havia comprado pra mim, e me deu sapatos bonitos. Muitos sapatos, que na época eu conseguia usar sem chorar por dentro. Em resumo, o castigo veio pra mim, Kai nem sequer teve a adaga retirada de si. Me lembro de vê-lo praticando golpes entre os corredores do palácio. Me lembro também, sde quando ele sem querer enfiou a adaga em meu antebraço, sem querer a disparou em minha direção. Agora eu já não sabia se era realmente sem uma intenção perversa.
Mas, uma memória em si me chama a atenção. De quando eu e Kai estávamos passeando nos jardins com nossa mãe, ambos de mãos dadas com ela. Mamãe cantarolava, seus longos fios negros oscilando a cada passo. Estava muito calor, então nos dirigimos até a fonte, onde eu e Kai começamos a jogar água um no outro para nos refrescar. Mamãe se sentou em um dos bancos perfeitamente pintados, e cruzou as pernas com graciosidade. Ela nos observou por um tempo. Até um sentinela aparecer. Mamãe se levantou para perguntar se ele precisava de ajuda, pois o homem suava e arfava, depois de se aproximar, se afastar, e se aproximar novamente.
Ela não teve tempo de terminar a pergunta. Porque o homem cravou uma adaga, fundo no peito dela. Me lembro do estampido de terror, do som de sua cabeça se chocando contra o chão de pedra, os cabelos espalhados pelo chão, agora manchados de carmesim. Mais sentinelas chegaram, assim que ouviram meus gritos, e conseguiram separar a mim e Kai do corpo inanimado de nossa mãe. Mas deu tempo de ver a insígnia de leão na ponta da adaga, deu tempo de ver as pupilas do homem brilharem em vermelho. O suor. Agora... agora tudo aquilo fazia sentido. O rei de Orn mandou um espião para matar minha mãe. Mas ele mudou de ideia, eu vi o sentinela se afastar, antes de se aproximar novamente. Da primeira vez em que ele se aproximou, suas pupilas estavam negras. Da segunda vez, ele estava sendo controlado, segurando uma adaga em especial. Controlado por Kai. Que havia matado minha mãe .
O peito de Lúcios subia e descia com dificuldade, seus olhos tremiam debaixo das pálpebras. As bochechas estavam molhadas, pelas minhas lágrimas, notei logo depois. Eu não conseguia respirar. Meu chão desabava, o que aconteceria depois? Se Lúcios não voltasse, o que seria de mim? Quem iria me fazer rir, segurar minha mão e me levar à loucura? Quem me encorajaria, me amaria, e se ajoelharia aos meus pés para aliviar minha dor? Quebrei uma promessa. Havia prometido que não deixaria que ele morresse, mas mesmo assim, aqui estava ele. Estirado no chão debaixo de uma poça do próprio sangue. Ninguém sobreviveria a isso.
— Eu... amo...
Ele tentava falar, mas apenas os lábios se mexiam.
— Poupe energia, vamos salvar você.
Era uma afirmação, uma garantia. Mais pra mim mesma do que para ele. Eu precisava acreditar, se eu acreditasse conseguiríamos. Certo?
— Finn!
O príncipe respondeu antes que o esperado, se ajoelhou ao meu lado, e estendeu as mãos para a ferida de Lúcios.
— Posso congelar parte dele, vai preserva-lo, mas vai doer.
Concordo com a cabeça, nada pronta para os gritos de dor que se seguem. Decido que é demais para digerir, então me levanto, para dar com Jasper segurando meu irmão. Se é que devo chamar aquilo de irmão.
— Você matou nossa mãe.
Sua expressão de surpresa, é o que me dá forçar para continuar. Com o ódio que cresce dentro de mim.
— Só quero saber, o porquê.
Digo, pausadamente. O zunido em minha cabeça só aumenta, sinal do sangue que sobe até meu cérebro. Sua expressão de surpresa some, dando espaço para uma cara séria, sem sentimento algum.
— Você é a vida de Kibtaysh, eu sou a morte do continente. Nasci para matar. Sou uma máquina mortífera, é isso que sei fazer. E foi isso que fiz. Te deixei mais fraca pra sugar seu poder. É isso que eu faço.
Olhei em seus olhos, o reflexo oposto de meu rosto sendo mostrado naquela frieza sem fim. E senti pena. Porque não havia arrependimento ali, havia incompreensão. Nem ele entendia o porquê de tudo aquilo, nem ele podia se entender.
— Me mate.
Suas palavras formavam correntes em meus punhos. Eu simplesmente não podia.
— Pelo Lúcios, por nossos irmãos... por nossa mãe. Me mate. Por mim.
Algo se expandiu dentro de mim. Como se ele tivesse dito exatamente o que eu precisava ouvir. Então juntei os dedos em uma lâmina de fogo, e a enterrei em seu coração.
— Eu te perdoo.
Eu disse para o vazio.
— Eu te amo
O vazio me respondeu de volta.
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A linhagem do fogo
FantasyO herdeiro negro foi descoberto, mas isso não pode impedir ou diminuir seu poder sobre o país dourado. Agora Kalishta vai ter que conciliar os assuntos do coração com a luta por poder contra o próprio irmão, enquanto tenta protejer os que ama. Mas s...