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Caminhávamos alinhados, um ao lado do outro com os poderes escondidos, mas ao alcance. Eu e três príncipes, eu e três herdeiros de suas terras. Não usávamos sequer uma grama dos poderes, temendo que a exaustão viesse mais rápido que pudéssemos prever. Seguimos avançando pelas irregularidades do terreno, caminhando desde o anoitecer até os primeiros raios de sol, surgindo por entre as folhas verdes das árvores ao nosso redor. Já pisávamos em Kibtaysh. Eu já sentia o reino nas veias, a natureza invadindo meus pulmões, fortalecendo meus ossos, curando meus pés. Meu reino, meu povo. Eu os protegeria até o fim.

— O plano é encurralar ele, longe de qualquer um.

Finn reforça, ajustando a espada longa ao lado do corpo no momento em que o castelo começa a aparecer em nossas visões. Me lembro da cada instante em que corri para casa com aquela visão preenchendo meus olhos, a animação dos meus irmãos no fim da tarde. Saudade inunda meus pulmões, me sufoca na realidade de que nada nunca mais vai ser o mesmo. Como vamos parar Kai sem matá-lo? Isso seria possível? Não havíamos discutido a possibilidade, e no fundo eu sabia que todos evitavam tocar no assunto por medo de me magoar.

Nos aproximamos cuidadosamente do castelo, despreocupados com nossos passos que ecoavam pelos arredores, esmagando galhos e folhas secas. Parecia morto, não tão morto quanto o reino do outro lado do mar, mas ainda assim morto. Inflei os pulmões e espirei aquele ar, menos puro do que eu me lembrava. Fechei os olhos sem parar de andar, e concentrei parte de minha energia para me conectar com Kibtaysh.

— Isso é...

Só percebo que estou brilhando quando a voz rouca de Jasper arranha meus tímpanos, me acordando de meus devaneios. Para olhar ao redor. Para meu reino ganhando vida aos poucos, para minha própria pele ganhando um tom dourado, diferente do tom cinza que antes trazia. E apenas naquele momento me dei conta de que antes me sentia morta.

— Incrível

Lúcios completa, os olhos lívidos e concentrados. Eu poderia ter admirado aqueles olhos tempestuosos por uma eternidade, não fosse pelo ranger de portas que a entrada do palácio emitiu. Quando nós demos conta, estávamos à poucos passos de nosso destino, a poucos passos de Kai, nos esperando à porta. Ele sorriu. E então estendeu uma das mãos para trás, um fio de poder a acompanhando.

— Quanto tempo irmãzinha. Quer ver meus novos brinquedos?

Kai se afasta da porta para dar lugar à algumas pessoas. As pessoas passam por ele de cabeça baixa, as cabeleiras ruivas oscilando a cada passo bruto. Quando as cabeças se erguem após um estalo de Kai, quero gritar. Quero correr e chorar, quero matá-lo. Zander, Owen, Vlad, Alex e Arlo, todos os meus irmãos erguem os pescoços. Seus olhos não passam de buracos, banhados em negritude e escuridão, as bocas mal passam de linhas finas, os corpos antes musculosos, agora podiam ser confundidos com cadáveres em decomposição. Sangue escorria por furos em seus corpos, além dos pulsos e tornozelos acorrentados. Não pude falar, não contra o nó que havia se formado em minha garganta. Não consegui encarar aquelas órbitas vazias. Onde antes habitavam olhos de esmeralda brilhantes, como os meus. Aqueles corpos sem vida, antes fortes que corriam comigo ao redor das muralhas onde agora estávamos. Não pude olhar para nenhum lugar exceto Kai, aquela esmeralda maligna carregando ônix puro em suas mãos. Ônix que brilhava em poder.

— Foi lucrativo ter seus irmãos afinal. Bastante sangue pra colecionar...

Por um instante, foi como se a Terra tivesse deixado de girar. Como se o tempo parasse, e todas as coisas ao meu redor não passassem de detalhes. Estávamos a pelo menos meio metro de Kai, mas eu só precisei de um passo para alcançar seu pescoço. Fui tão rápida, que nem eu entendi o que estava acontecendo, até ser jogada para trás em uma rajada de escuridão.

— Não pode contra mim.

Me choquei contra Lúcios, que me segurou de pé, enquanto Finn atacava. Não atacava, mas garantia que Kai lutaria sozinho. Finn ergueu paredes de gelo atrás do herdeiro negro, impedindo a saída de qualquer aliado em potencial dentro do castelo. Ou pelo menos dificultando um pouco.

— Ah, Jasper. — Kai encara o príncipe como se puxasse assunto casualmente— Aquela ideia que você acabou vazando, não deu certo...  descobri que só preciso de mim mesmo como aliado.

Em um movimento simples Kai ergue os braços, e o terreno se transforma. A terra treme e cede, nos enterra mais abaixo, criando uma arena improvisada de combate. Me pergunto se o motivo é Kai querer jogar a culpa para nós no último segundo, convencer o povo de que ele era o herói.

— Deve estar bem seguro de si, se prendendo conosco por livre e espontânea vontade.

Lúcios flexiona os dedos longos até que aumentem perceptivelmente de tamanho, poder que nunca antes havia mostrado. Seus ombros parecem se alargar, ele parece maior. Mais forte.

— Você vai ser o primeiro a morrer.

Kai ergue a mão novamente, os olhos focados em Lúcios, em cada um de seus movimentos. Ele da um passo na direção do príncipe, provavelmente por conta de seu curto alcance com o poder. Mas assim que tenta dar o segundo, é impedido. Pelo gelo espesso de Finn, que sobe por suas canelas fincando-o no chão.

Então é a vez de Jasper, ele bate as palmas das mãos na terra, e a mesma o obedece, se levanta e forma duas grandes colunas sólidas. Quando ele ordena, elas caem e soterram meu irmão, até que apenas sua cabeça possa ser avistada debaixo do marrom-avermelhado. Quando já não percebemos nenhum movimento de nosso inimigo, nos aproximamos de vagar, cada passo retumbando junto com nossos corações. Era quase como se estivéssemos de mãos dadas, todos em círculo ao redor do corpo soterrado. Mas durou pouco.

Porque assim que chegamos perto o suficiente para ver seu rosto, o mesmo não exibia nada menos que um sorriso de escárnio. Seu rosto não exibia uma ruga sequer de dor ou desespero. Era quase como se ele tivesse planejado tudo aquilo. Terra e gelo explodiram por todos os lados quando Kai se levantou, nenhum dos elementos fora capaz de detê-lo. Com uma facilidade letal, Kai avançou sobre mim, e ergueu sua espada. Eu já estava pronta para revidar, havia calculado a distância e o ângulo da arma, sabia que aquilo não passaria de um corte na coxa. Mas Lúcios interviu.

Meu noivo estendeu uma das mãos para Kai e fez com que seus pulmões parassem. Meu irmão se assustou, e arregalando os olhos verdes se afastou de mim, caindo de joelhos quando o rosto adquiriu um tom de roxo. Lúcios se aproximou por trás de mim devagar, eu podia sentir seu poder hesitar. Deveríamos deixá-lo vivo? Que prisão no mundo poderia contê-lo? Mas não deu tempo nem sequer de responder essas simples perguntas. Porque como se não passasse de brincadeira de criança, Kai simplesmente sugou ar com seus pulmões, e se levantou do chão com um sorriso largo.

— Ah, creio que sou um ótimo ator. Acharam mesmo que vento, gelo, ou mesmo terra venceriam fogo? Princípio básico da natureza.

Não. Aqueles elementos, apesar de controlados por herdeiros não poderiam vencer o herdeiro negro. Mas fogo contra fogo tinha chance. Agora era questão de quem lançava o fogo mais ardente.

A linhagem do fogoOnde histórias criam vida. Descubra agora