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Foi a viagem mais torturante da minha vida, repleta de uma ansiedade, que beirava ao desespero nas noites mais frias. Noites em que eu agarrava o corpo ao meu lado, pressionando-o como uma válvula de escape. O mundo poderia ruir, todos poderiam sumir, mas aquele homem ao meu lado não. Pela manhã, enrolávamos um pouco na cama, com carícias e frases apaixonadas antes de finalmente pular para a parte da ação. O local de treino no navio era limitado, sem falar no risco do barco todo pegar fogo com minhas chamas, já que seu material era altamente inflamável. Então Finn depositava uma fina camada de gelo no chão, para que o pior não ocorresse. Formávamos grupos de dois e alternávamos nos ataques, nossa força aumentando pouco a pouco. Eu podia sentir a magia, o fogo queimando minhas veias, explodindo pelos dedos e as palmas, tão vivas quanto eu. Os garotos pareciam mais musculosos. Meu corpo, mais ágil e leve, mais resistente a cada soco e chute. Eu me sentia verdadeiramente pronta, mas isso mudaria quando eu estivesse diante do exército de Kai? Eu fraquejaria diante de minha outra metade? Conseguiria acabar com sua vida?

— No que pensas?

Damian afasta-se dos outros príncipes no convés para me interceptar, os cabelos negros antes tão pequenos que mal eram visíveis, agora fios médios caindo até às orelhas.

— Em desembarcar logo e acabar com esse enjoo sem fim.

Não era mentira. Minha mente e estômago balançavam a cada solavanco do navio, chacoalhavam a medida que as ondas apenas oscilavam. Mas por sorte estávamos a poucas horas de distância de Kibtaysh, meu irmão provavelmente ciente disso. E como se pudesse ler meus pensamentos apenas de acordo com minhas feições, Finn se aproximou, arfando e suor escorrendo pela testa, mas o rosto em uma calma constante.

— Vai dar tudo certo.

Eu queria acreditar. Queria mesmo acreditar, mas havia subestimado o poder e inteligência de Kai, cairia no erro novamente?

— Olha!

Austin estende o longo braço em direção do mar, aonde terra começa a ser avistada. Uma linha fina, porém nítida de nosso destino. Os príncipes terminaram a luta e se aproximaram, os olhos vidrados como o resto da tripulação. Nos aproximamos pelo reino de Elliwe, levamos toda a tarde para chegar perto do Porto e atracar, já buscando formas de nós esconder conforme descemos no enorme navio nada discreto.

Segundo Finn, passaríamos a maior parte de nossa viagem pelas trilhas da floresta de Elliwe, quando possível passaríamos por Bulhart para chegar até Rithan, onde as princesas haviam sido capturadas. Ainda tínhamos mantimentos do reino anterior, o suficiente para pelo menos duas semanas de viagem. Talvez o suficiente para nos sustentar até o reino de Lúcios. Lá restabeleceríamos nossas forças e nos prepararíamos para o ataque real. Kai estaria nos esperando, mas pensando em nossas forças antigas, pensando que não passávamos de pessoas acusadas que fugiram, e apenas decidiram voltar por honra.

Damian e Austin andavam à nossa frente, como dois guardas brutamontes que seus tamanhos sugeriam. Finn e Jasper caminhavam atrás, e eu e Lúcios no meio. Era quase uma formação de ataque, uma proteção contra seja lá o que na floresta. Fora ideia de Finn. O sol se pôs, e ainda assim não paramos de andar, meus olhos pesavam e meu corpo doía. A caminhada era lenta, então fôlego não nos faltava. Mas os pés doíam de qualquer forma, os galhos secos pareciam mirar em minhas solas para acerta-las. Por maior que fosse o cuidado que eu tomava, parecia totalmente em vão diante dos filetes de sangue que já escorriam pela minha carne.

— O que acham de descansarmos agora?

É Finn quem diz. Ele não espera permissão para tirar a sacola das costas e começar a afastar folhas secas e galhos, já se direcionando para o local limpo afim de colocar suas coisas de dormir.

— Pensei que caminharíamos por dois dias seguidos antes de descansar.

Afundo os pés na grama diante do comentário de Damian, não queria ser o motivo de nossa parada. As folhas escondem o sangue, que não jorra, e até começa a secar.

— Se você aceitar carregar Kali no colo até o segundo dia, fique a vontade.

Lúcios franze a testa para Finn antes de me lançar o mesmo olhar confuso, mas balanço os ombros em indiferença. Quero dizer que não dói, que é uma grande besteira parar por minha causa, mas seria mentira. E quanto Lúcios me olha nos olhos, fica impossível mentir. Engulo em seco e permaneço ali parada, até meu noivo fazer o que sempre faz... se ajoelhar aos meus pés. Ele gentilmente envolve meus tornozelos com as mãos, e puxa um pé de cada vez, verificando as solas.

— Vamos parar. — Lúcios declara por fim.

— Mas... — Damian tenta contestar

— Vamos. Parar.

Lúcios não se vira para o irmão quando declara, me pega em seus braços e me leva até onde Finn já está sentado, depositando-me no chão como uma criança ferida. Me encolho contra o corpo de Finn, diante do frio que se aproxima. E como se pudesse ler meus pensamentos, minha linda e inteligente alma-gêmea volta, trazendo galhos secos consigo. Damian e Austin finalmente desistem de esperar em pé, quando estendo minhas mãos sobre os gravetos e trago chamas para nós. Chamas pequenas, o suficiente para nos aquecer, mas não para nos delatar. Já estamos todos deitados ao redor da pequena fogueira quando Lúcios se aproxima novamente. Mas ele não diz nada, apenas se deita ao meu lado, e me envolve em seus braços. Seu peito sobe e desce pesadamente, sua respiração é pesada. Corro os dedos pelos seus cabelos, depois pelo rosto e pela barba por fazer. Quero beija-lo, deixar uma trilha de beijos em seu queixo e pescoço, quero tê-lo ali mesmo. Mas temos plateia.

— Não posso perder você também.

Seus olhos permanecem fechados, o rosto impassível quase se tornando uma expressão de agonia. Sei que não quer ser visto, então enterro meu rosto em seu peito, aumentando ainda mais a proximidade entre nossos corpos.

— E não vai. Não vamos nos perder um do outro.

Sinto suas mãos se fecharem no tecido de minha camiseta, a apertando como se fosse alguma garantia. Colo nossos corpos, tentando transmitir uma pequena mensagem de que eu estava ali, de que eu estaria sempre ali.

— Eu estou com medo.

Ele murmura contra minha cabeça, as ondas de sua voz reverberando por seu peito forte colado em mim.

— Também estou com medo.

Respiro por um momento. Dois. Então suspiro fundo, tomando ar para as frases difíceis.

— E é isso que nós faz fortes. Vamos proteger um ao outro Lúcios, somos nosso próprio exército.

Com uma calma melancólica, Lúcios me afasta devagar, para encarar meu rosto. E mais uma vez, seu olho direito brilha em ametista.

— Somos mais que isso agora Kali, somos família.

A linhagem do fogoOnde histórias criam vida. Descubra agora