13. PODER CANINO

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⚠️ : AVISO! ESSE CAPÍTULO CONTÉM PEQUENA DESCRIÇÃO DE UMA CRISE DE ANSIEDADE. CASO PREFIRA PULAR, OS PARÁGRAFOS ESTARÃO INDICADOS (*) NO INÍCIO.

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O olhar firme de Henry só combinava com a ficção - preferencialmente com uma peruca branca. Ao vivo, era difícil ver o quão decepcionado havia ficado, sabendo que carregava um sorriso sempre tão gentil e bobo. Pior ainda saber que só havia uma pessoa a quem culpar: ela mesma. E esse era justamente motivo de não se abrir, de permitir que apenas duas pessoas soubessem o que realmente se passava em sua mente...

Medo. Julgamentos. Mágoas.

Sabia que suas questões eram normalmente mal interpretadas pelas pessoas sem mesmo expor, mas era suas e eram reais. Ironicamente, era mais fácil ver o homem pelo qual estava se apaixonando - só para não dizer que já estava por completo - sair pela porta do que falar a respeito. E que grande ironia... Viu-se parada encarando a porta por tanto tempo que perdeu-se em seus pensamentos e, por mais tóxicos de fossem, serviram para lhe lembrar de uma verdade que parecia ter sido ofuscada pela emoção: tempo.

Restavam poucas semanas junto de Henry e não tinha se dado conta até então. Respirou fundo ao se lembrar que as filmagens de The Witcher na Hungria logo chegariam ao fim, com o sentimento de saudade lhe tomando o peito. Não o veria mais. O que quer que tivessem começado a criar não passaria de uma lembrança, e Jacqueline obviamente se questionava se para ele havia sido o suficiente para tanto. Mas era, ela só não acreditava. Então assim acabariam? Henry decepcionado e ela arrependida de não ter se aberto pelo menos um pouco mais? Essa possibilidade doeu. Seria mais um fantasma a lhe assombrar por falta de coragem, e já tinha o suficiente para se sentir incompleta.

Despertou de seu devaneio esclarecedor com repetidas piscadas, tornando a acariciar Kal e chamá-lo para lhe acompanhar. Junto dele, seguiu para o depósito, pegou duas tigelas - uma para água e outra para ração -, alguns brinquedos e deixou disponível ao lado da sua cadeira na recepção. Sentou-se nela e pegou novamente a carta. Encararia aquele drama - mais uma vez.

Ao percorrer os olhos pelas palavras novamente, sentia a mistura de desejo e medo lhe invadir o interior. Não era um convite qualquer, ou como o da última vez que lhe convidaram para participar que uma semana de cursos e palestras na universidade. Tratava-se da maior oportunidade da sua vida: seguir seus estudos. E de forma praticamente gratuita. Qualquer um teria pulado de alegria e aceitado me imediato, mas a lágrima que escorreu pelo rosto da espanhola não tinha tal conotação.

Insegurança. Decepção. Medo.

Jacqueline havia fundado, junto de seus professores e orientadores, um departamento especializado em oncologia. A iniciativa partira totalmente dela, bem como a idealização dos projetos e estudo de casos. Havia sido um motivo de grande destaque para a Universidade de Medicina Veterinária da Hungria, e para ela própria dentro do mercado de trabalho. Seu diploma na parede, os certificados e demais honrarias eram frutos dessa dedicação e conhecimento. Receber a proposta de realmente estudar e se especializar na área era um sonho, sim. As portas de seu futuro se abrindo bem ali diante de seus olhos... E fechando-se com um estrondo por conta de sua mente. Teria de sair dali para isso. O departamento ainda não contava como uma pós-graduação, apenas um direcionamento acadêmico e atendimento direto, e a proposta recebida envolvia uma parceria com uma rede de universidades já estruturadas por toda a europa. Poderia escolher, sim, mas teria de deixar sua estabilidade. Sua segurança e garantia. Havia uma carga emocional muito pesada na ideia de sair daquela cidadezinha, tanto que há muito se escondia, e se odiava por não conseguir lutar contra o medo de voar. Essa era a grande questão da sua vida. O medo de falhar fazia dela a própria prisioneira.

Enquanto lia e relia em sua reflexão subestimada, Kal brincava com a bolinha e pelúcia que ganhara de presente, e percebeu que a humana não estava bem. Soltou um de seus graves e altos latidos para chamar sua atenção, em seguida empurrando com o focinho a bola de forma que rolasse até os pés de Jacqueline. Ainda que com o coração aflito, não pôde deixar de sorrir com aquilo. Talvez esse fosse o "superpoder" dele que Henry comentara a respeito, pois lembrava-se de tê-lo ouvido falar sobre o akita sempre deixá-lo bem depois de um dia difícil. Riu baixo para o animal, que abanava o rabo com a língua para fora, e caminhou em sua direção tendo a bolinha em mãos.

━ Você quer atenção, né?! Tudo bem, mas sem quebrar nada dessa vez! ━ Arqueou as sobrancelhas para ele segurando um riso e jogou o objeto na direção do corredor. ━ Pega. ━ Sentou vendo o cão correr, ali no chão mesmo, com as costas apoiadas na parede e esperou até que voltasse com a bolinha na boca. ━ Muito bem, garoto.

(*) Afagou o pelo macio sentindo o mesmo se aconchegar contra si, exatamente em seu peito, que batia acelerado e angustiado. A respiração também não era das mais estáveis, e nem poderia com tantas sensações consumindo e fazendo com que se sentisse ainda mais atormentada. A única coisa que pensava era que tinha tudo - família, suporte - e depois nada. A voz de sua avó a lhe encorajar ecoava em sua mente pedindo para que continuasse, para que tentasse... A imagem desses últimos momentos junto dela sempre ficaria marcada em sua memória. Assim como o medo de decepcioná-la e não ser quem ela acreditava

(*) Quanto mais permitia que essas lembranças voltassem, que sua insegurança falasse mais alto, mais descompensava a respiração e sentia o ar lhe faltar. Fechou os olhos apoiando o rosto na parede e tentava se recompor, ignorar a sensação das paredes se comprimindo e de seu corpo estar se reduzindo dentro de uma sala cada vez mais apertada, mas não sabia como se controlar, sequer percebeu que a mão tremia sobre os pelos do cachorro que abraçava. Há muito tempo não tinha um momento, ou crise, do tipo. Ao menos não estava completamente sozinha dessa vez.

E foi naquele momento, no meio daquela ansiedade sobre quem queria ser e quem sentia que era, que compreendeu o amor de Henry por Kal. O quanto ele significava. Sua missão na Terra. E ele simplesmente estava lá, existindo. O rosto fofo e grande apoiado no ombro feminino e a pata a cutucar seu braço... Como se fosse bobagem, e fazendo parecer fácil tirar todo o sofrimento de dentro dela. Quando Jacqueline conseguiu se concentrar no ambiente ao seu redor, pôde sentir seu amor curativo. O afeto, junto das cheiradas e lambidas, ajudavam a liberar a dose necessária de serotonina e dopamina que seu corpo necessitava para reestabelecer os ritmo cardíaco e conseguir respirar outra vez. Kal realmente era um cão de assistência emocional.

━ Eu sei que é meio egoísta... Mas obrigada por estar aqui. ━ Sussurrou abraçando ainda mais o animal, sem conter as lágrimas em seu rosto. Não era a primeira vez que falara ou até desabafara com algum animal, mas foi a única na qual tivera certeza de que seria ouvida e compreendida. ━ Você é muito especial, sabia?! ━ Soprou um riso irônico quase inaudível ao recordar que logo não o teria ali para ampará-la ou fazê-la sorrir quando precisasse, aquilo era quase uma fantasia. Afastou o rosto para olhá-lo melhor e segurou a cabeça como se estivesse apertando as bochechas de um bebê fofo. ━ Eu vou sentir sua falta, Kal... Sua e dele.

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NOTA:

Deixo aqui minha mais sincera admiração pelos envolvidos nos projetos de cães de assistência e demais serviços. Apesar dessa forma de apoio e terapia emocional não ser ainda muito difundida no Brasil, espero que a valorização venha como tanto merece.

Kal & ElaOnde histórias criam vida. Descubra agora