Capítulo 2 - O ladrão mascarado

79 7 0
                                    


Uma coruja pia em algum lugar antes de emboscar sua presa aos pés de uma árvore, assim como eu. Sou a coruja empoleirada no topo do olmeiro, com olhos amarelos espiando-os em seu sono. Certo, essa é só uma frase poética que meus professores me ensinaram, não sou uma coruja, sou um homem. Mas me chamam de Dragão. E eu estou em cima de um olmeiro.

Lá embaixo vinte homens estão dormindo na beira do rio, o rio que o Regente mandou represar com sua Muralha, matando milhares de pessoas de sede nas montanhas. Sei que não deveria ter raiva desses homens, eles não me fizeram nada de mal e tem motivos nobres pelos quais lutar, mas enquanto seguem cegamente as ordens de um desconhecido, matam constantemente parte de meu povo e isso eu não posso tolerar.

Meus pés escorregam quase que inconscientemente, levando-me para baixo com a destreza de um esquilo. Antes que os homens possam perceber qualquer ruído, estou apagando seu fogo silenciosamente, me ocultando na fumaça. Os soldados estão cansados depois da longa caminhada e mal sentem o frio que subitamente os assola. Alguns se encolhem, outros tateiam em busca das mantas e se cobrem até o queixo. Ninguém abre os olhos e, se por acaso abriram, não me viram. Sou mestre em me ocultar nas sombras. Amo a noite tanto quanto amo minha máscara.

Um cavalo relincha na escuridão me indicando o caminho para os tesouros que estou procurando. Não, não se trata de ouro ou prata, embora eu as roube as vezes e, no caso deste regimento em específico, farei questão de levar algumas bolsas de moedas. É um regimento de filhos de nobres, jovens que não querem de verdade lutar pelo reino, mas desfrutam de bom renome se tiverem estado entre os soldados em algum momento de sua história. Eu os desprezo quase tanto quanto desprezo o Regente. Mas no momento estou buscando ervas. Folhas de chá medicinais, um pouco de comida. Calculo mentalmente quanto falta para que estes homens cheguem ao vilarejo mais próximo e deixo ração o suficiente para que sobrevivam ao próximo dia de caminhada, afinal não quero matar alguns para saciar outros. Só desejo igualar as coisas. Se o Regente cortou toda a chance do povo da montanha se sustentar, então resta a mim tomar de seus soldados e redistribuir ao restante, afinal o povo da montanha já pertenceu ao império um dia, antes de ser traído e então exilado.

A Muralha da qual Zhang Wei, o Regente e antigo conselheiro real, tanto se orgulha foi uma sentença de morte para muitas pessoas. A água antes abundante agora é um córrego fino que seca no verão intenso, deixando a população das montanhas sem água, exceto se eles correrem o risco de escalar os picos mais altos em busca de gelo. A escolha parece ótima, não é? Tentador morrer de sede ou morrer escalando uma montanha. Há muitas formas de morrer escalando uma montanha.

O território de lá é pedregoso e árido, sem vegetação abundante, o que diminui suas opções de fruta e de caça, consequentemente sua população passa fome quase que o ano todo. O povo da Muralha acha que o povo da montanha, que eles chamam de O Povo do Outro Lado, é mestre em matar pessoas, mas eles na verdade são mestres em sobreviver à duras penas.

Eu gostaria que o povo deste lado soubesse pelo que passa o povo do Outro Lado e o motivo pelo qual o Regente não toma uma atitude, mas sou uma voz perdida na multidão e se tentar abrir a boca do alto muitos me calarão. Sou mais útil vivo que morto, penso que pelo menos enquanto meu coração bate meu povo consegue sobreviver.

Separo o que posso, aliviando a carga dos soldados, inclusive as bolsas mais cheias de moedas, e escondo no meio da floresta. Depois, com calma e fora das vistas deles, as amarro ao alforje de meu cavalo. Faça cinco viagens, então concluo que já tenho tudo de que preciso.

As pessoas acham que eu atravesso a Muralha por cima, aproveitando os intervalos das sentinelas, ou então que o faço por mágica, mas a verdade é que é impossível tanto uma coisa quanto outra. Há muitos vigias nas ameias, muitos soldados escondidos em pontos estratégicos e por mais que eu às vezes saiba onde estarão escondidos, não posso guardar toda essa informação o tempo todo, de modo que na verdade meu jeito de atravessar a Muralha é bem mais simples: Eu tenho a chave do portão.

Enquantoos soldados mantêm os olhos alertas no alto aguardando o Dragão vir por cima,eu e meu cavalo passamos por baixo. Ninguém nunca se lembra de olhar parabaixo. Ninguém sequer lembra que existem portões estratégicos na Muralha. Nósdois afastamos a hera e o mato alto e passamos tranquilamente, levando suprimentos para quem precisa.

A Muralha cerca toda a floresta, de modo que quando pisamos do lado de fora somos recebidos por uma vegetação rala, terra seca e muitos pedregulhos. A lua brilha em um fio tímido de água que é o córrego e no horizonte as montanhas se erguem imponentes. Subo no cavalo, me mantendo longe dos faróis que cercam a Muralha, então o esporeio sabendo que os soldados irão me ouvir, mas que suas flechas não me alcançarão.

Minha primeira parada é uma vila no sopé da montanha. Não passa de um apanhado de casinhas de madeira e algumas famílias muito pobres que decidiram morar ali por ser mais perto da água. Eles estavam prosperando bem até, dadas as circunstâncias. Tinham plantado arbustos de amora, criavam lebres, cabras e cultivavam alguns vegetais... Aí o regente mandou envenenar o córrego e todos adoeceram. Agora eles só sobrevivem enquanto eu conseguir trazer água e alimento para todos. Faz cinco dias. Hoje eu preciso subir a montanha e pedir ajuda aos líderes, caso contrário todos estarão fadados.

— Abençoado Dragão — me cumprimenta a mulher humilde que abre a porta do casebre para mim. Em uma diminuta cama encostada na parede está uma criança mirrada que talvez não sobreviva ao envenenamento, mas estou fazendo o possível para ajudar.

— Trouxe ervas medicinas — anuncio entregando-lhe o pacote de suprimentos que roubei dos soldados. Confesso que não tenho muita prática com envenenamentos. Quando estava aprendendo decorei os tipos de plantas, os efeitos de usá-las, tanto para o bem quanto para o mal, e sei as formas de tratamento, mas a vida me apresentou poucas chances de utilizar meu conhecimento até então. Eu ficaria muito mais tranquilo se pudesse trazer um médico de verdade para o vilarejo e considero por um instante a ideia de sequestrar um curandeiro de um vilarejo ou mesmo o médico do palácio, se eu tiver chance.

Certamente um homem com a responsabilidade de cuidar da saúde de Vossa Celestial Majestade, poderá dar conta de algumas crianças envenenadas.

Enquanto a mulher se ocupa preparando o remédio, eu me sento na beirada da cama ao lado da criança. Tiro do cinto meu cantil e alcanço um trapo deixado em cima de uma cadeira. Eu umedeço o pano, passando-o pelo rostinho febril do menino e quando suas pálpebras tremulam tentando se abrir, encosto o cantil em sua boca, deixando a água limpa e fresca correr. Eu trouxe água limpa para a família toda mais cedo. Há jarros e potes espalhados por toda a casa, mas ainda não é o suficiente para o povoado. Até o meio dia de amanhã eles estarão passando sede. Sinto-me miserável e impotente. Sou apenas um único homem montado em um cavalo tentando salvar um reino.

Não percebo que disse isso em voz alta até a mulher estar parada ao meu lado, com uma mão em meu ombro e uma xícara de cerâmica, meio torta, em outra mão, com o chá medicinal.

— Então talvez você deva arrumar uma mula para te ajudar a levar a carga — ela brinca com voz fraca, então se inclina para derramar o chá na boca do filho. Quando termina ergue os olhos para mim e vejo gratidão neles — fique em paz, bravo Dragão. Você está fazendo mais do que o possível para nós. Ficaremos bem. Iremos sobreviver, afinal, somos o povo da montanha. Nascemos para resistir.

Aperto as mãos nodosas dela entre as minhas, enluvadas.

— Eu subirei ao topo hoje, falarei com os líderes. Sei que eles virão ajudar.

Ela assente com olhos marejados. É minha deixa para sair. Desejo melhoras para seu filho, com minha mais absoluta sinceridade, começando minha trajetória rumo ao topo. De alguma forma, prometo a mim mesmo, eu conseguirei a força e a inspiração necessária para vencer e salvar todo o meu povo.

Eu só não sei como ainda.

Qingshan e o imperadorOnde histórias criam vida. Descubra agora