Qingshan e o imperador

Capítulo 9 - Novato

— Shang! Já era para você estar em pé! — sou acordada com uma pancada nas costas. Por um momento não sei onde estou, mas aos poucos as coisas vão chegando até mim de novo, como que em um sonho muito distante. Sento-me no saco de dormir, ainda enrolada em minha manta fina providenciada pelos oficiais e tiro as folhas que grudaram em meus cabelos arrepiados.

A pancada que me acordou foi Ren lançando-me seu travesseiro. Tenho uma visão parcial dele parado em frente à fogueira, afivelando o cinto. Faz quatro dias que estou entre os soldados e ainda não fui descoberta. Dei a eles o nome que eu poderia ter tido se tivesse nascido homem: "Li Shang", e o capitão encarregado do alistamento dos novatos no Mercado Leste sequer hesitou. Ele na verdade mal me olhou. Indicou por sobre o ombro um barracão com mantimentos, onde estavam outros jovens alistados e onde passei o primeiro dia, no segundo já viemos com o regimento dele para um posto de segurança a meio caminho da Muralha, onde seremos treinados ao longo do primeiro mês. Pelo menos é o que me foi dito. Quando esse período passar receberemos nosso uniforme oficial e o primeiro pagamento, pelo qual aguardo ansiosa e apreensiva. Cada dia é um novo dia para enganar todo um regimento.

— O que está acontecendo? — pergunto esfregando o rosto para espantar o sono. Ainda não amanheceu completamente, mas o regimento já está se movendo. Um pouco mais afastado, noto Nuo arreando os cavalos, entre eles o meu malhado.

— Não sei exatamente — Ren dá de ombros, vestindo um casaco e cuspindo nas chamas que começam a virar brasas. — O capitão simplesmente deu ordem para marchar.

— Eu estava de guarda quando um mensageiro do palácio chegou — diz Kim, sentado do outro lado da fogueira, calçando suas botas — não pude ouvir a conversa entre o capitão e ele, mas se veio de lá com certeza não é bom.

— Se o capitão recebeu uma ordem do palácio e está movendo a tropa, significa que seremos promovidos mais cedo. — Pondera Ren.

— Pessoal! — um soldado chega correndo até nosso grupo ao redor da fogueira. Ele é magricelo e estabanado e se chama Yan. — Nós estamos indo para a Muralha!

Apesar de Yan parecer apavorado com as notícias, Ren rola os olhos.

— Ah ótimo, vamos ficar de guarda na Muralha por um mês. Já ouvi dizer que fazem isso com os novatos.

— Mas então por que a pressa? — Kim rebate. Enquanto isso estou procurando meu casaco e minhas botas. Ao contrário deles que ficam sem camisa a qualquer momento, eu me mantenho vestida. Sempre. O máximo que faço é tirar o casaco e ficar de camisa, mas por baixo dela tenho os retalhos de minha antiga roupa de mulher, envolvendo meus seios e cintura, tornando meu tronco mais reto, mais forte... Na medida do possível. Embora, quando olho para Yan, penso que tomei precauções demais quanto a isso. Se deixasse os cabelos compridos, colocasse maquiagem e um vestido bonito, Yan poderia se passar por uma garota tranquilamente.

Uma mão calejada me entrega uma bota perdida. Quando ergo os olhos Nuo está parado a minha frente, segurando as rédeas de três cavalos.

— Você precisa parar de ser descuidado, Shang. — ele bufa quando agradeço. — E precisa deixar de ser um pirralho e virar um homem. — ele comenta, mas há certo carinho em sua voz. O grupo vive atormentando o franzino Shang, mas me aceitou bem entre eles. Eles consideram Shang um menino que fugiu de casa e acham que não tenho idade para me alistar, mas como sabem que o reino passa por dificuldades e muitos passam fome, de forma que não há alternativa a não ser se alistar, fazem vista grossa e tentam proteger o garoto que finjo ser.

A cada dia refino um pouco mais o personagem e me camuflo melhor, mas sei que é um trabalho mais difícil do que parece e que não calculei direito meu plano maluco e idiota antes de embarcar nele. Os homens tem o dobro da minha força, a maioria já tinha alguma experiência prévia com armas, quase todos já sabem lutar, isso inclui bater e apanhar, e eu... Bem, eu não sei nada. Mas já levei todas as surras que não levei em toda a minha vida nos últimos quatro dias.