Prólogo - Sangue na Montanha

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A memória mais antiga que ele tinha era a de estar em uma sala redonda com piso de madeira e paredes repletas de prateleiras, cada uma delas com uma profusão de baús, vasos e outros objetos preciosos. Eles brilhavam refletindo a luz de amplas janelas cuja visão era de um céu limpo em um dia de verão. Conseguia se lembrar do toque suave do vento morno e da voz de sua mãe cantarolando para niná-lo enquanto sua cabeça repousava gentilmente no ombro dela. Ela passeava pela sala andando de um lado para o outro, ora tocando os objetos, fazendo-os tilintarem, ora contando histórias. Tudo e nada o interessavam ao mesmo tempo. Lembrava-se de estar muito cansado depois de uma longa viagem a cavalo, afinal ele era apenas um garotinho.

— Olhe, Jun. — Sussurrou sua mãe, parando a canção. Bocejando, o menino ergueu a cabeça. A mãe apontava para uma armadura antiga, feita com bambu, madeira e couro. Ela estava estofada com sacos de palha, de modo que se sentava no canto da sala como se fosse realmente um guerreiro. Seu rosto era uma máscara esmaltada, branca, dourada e vermelha, com traços de dragão com a bocarra escancarada. — Ryujin, o dragão. Ele era um guerreiro muito poderoso de nosso povo, um colecionador de joias. Usava a máscara de dragão por causa das lendas. Não é bonita?

O menino se encolheu, escondendo o rosto na curva do pescoço da mãe.

— É assustador — ele sussurrou baixinho, enrolando um dedo no cabelo liso e escuro dela.

A mãe riu.

— É, ela é um pouco assustadora mesmo. Sabia que fui que desenhei? — Aquilo chamou a atenção do menino, que voltou a erguer o rosto. — Eu era uma artista quando ainda vivia aqui, antes de conhecer seu pai. Desenhei a máscara para o meu irmão, o príncipe de Montanha. Sabia que você tinha um tio tão poderoso?

Dessa vez o menino esticou a mão para tocar a máscara que a mãe tirara da armadura deixando um espaço vago na cabeça do boneco de palha. Jun tocou o esmalte e o ferro da máscara, sentindo sua frieza. Continuava lhe dando arrepios.

Passos soaram na porta da sala, chamando a atenção da mãe que voltou a colocar a máscara na armadura. Dois homens cruzaram o batente da porta conversando. Um era mais velho e mais alto, com uma barba longa, o outro era mais baixo, com rugas ao lado dos olhos.

— Aí estão eles! — anunciou o mais alto.

Jun esticou os bracinhos para ele.

— A mamãe estava me mostrando uma máscara assustadora, papai!

O homem mais baixo arqueou as sobrancelhas.

— Minha irmã não consegue deixar minhas histórias para trás — ele rolou os olhos, se aproximando para pousar uma mão calejada na cabeça do menino — não tema, pequeno Jun, o dragão nunca irá te ferir, por mais assustador que pareça. — Ele piscou e aproximou ainda mais o rosto, de forma a cochichar com o menino — vou te contar um segredo. Sua mãe sempre quis usar minha máscara...

— Eu ouvi isso! — protestou ela e os irmãos riram juntos. Eles ainda estavam rindo quando a risada da mãe subitamente se tornou um arquejo engasgado, o corpo dela ficando tenso. O menino sentiu que ia cair, e teria, se o tio não tivesse se adiantado para segurá-lo em um ato reflexo.

A mulher tombou inerte e Jun tentou gritar o nome dela, mas a voz não saiu. O pai ajoelhou ao lado, apalpando-a, tentando descobrir o que acontecera. Virou-a de costas e seus dedos se encheram de sangue.

— Uma flecha. — ele balbuciou, seus olhos mirando imediatamente as amplas janelas.

— É uma emboscada. — declarou o tio, que ainda segurava Jun. — Vocês tem que sair daqui!

Com pressa, ele passou Jun para o colo do pai e os guiou escadaria a baixo até que estivessem saindo do castelo pelos fundos. Evitando encontrar qualquer outra pessoa, não sabiam mais quem era aliado ou inimigo e por que teria atacado a princesa em sua própria terra natal.

O tio de Jun preparou os cavalos e os ajudou a montar, indicando a trilha mais segura para deixarem as montanhas e voltarem para seu próprio reino. Antes que partissem, no entanto, ele segurou as rédeas, encarando o cunhado com súplica.

— Juro que não tenho nada a ver com isso. Amava minha irmã, você tem minha lealdade, por favor, eu imploro que não entenda esse ataque como obra minha. Saiba que descobrirei o autor disso e ele irá pagar com a própria vida em troca da de Sun.

Jun, enroscado na sela do pai, se encolheu ainda mais embaixo da capa dele, apavorado e confuso. Sentia a tensão percorrendo o corpo do pai e mesmo sem olhar sabia que ele estava com dentes trincados.

— Sun está morta — ele declarou e o coração de Jun afundou entre as costelas — quanto a sua lealdade, só o tempo dirá.

Então ele tomou as rédeas da mão do outro bruscamente, esporeando o cavalo. Correram sem pausas até deixar as montanhas para trás e mergulharem na floresta, mas nem quando atravessaram o rio e estavam de volta ao seu território diminuíram o ritmo. O menino perdeu a noção do tempo, mergulhado em sonhos agitados em que sentia falta da mãe, não saberia dizer quanto tempo fazia que era sacudido no galope do cavalo.

Quando finalmente apearam era noite e estavam de volta ao palácio. O pai o levou para seus aposentos, acomodou-o na cama e andou de um lado para o outro, aparentemente sem chamar nenhum criado, sem dar explicações do porque deixara toda sua comitiva para trás e voltara sozinho.

Jun quase dormia. Não conseguia deixar a cabeça erguida. Ele se recostou no travesseiro, cansado e assustado demais para ter qualquer reação. Não sabia o que fazer com a dor surda que surgira do buraco invisível em seu peito.

O pai seguia andando. O longo manto de seda negra flutuando atrás dele, para lá e para cá, como um pêndulo. Jun piscou. Talvez tenha dormido. Quando abriu os olhos de novo, o conselheiro real em suas vestes amarelas estava conversando com seu pai. Jun se sentiu um pouco melhor. As coisas voltariam ao normal. Teriam que voltar. Talvez tudo fosse apenas um pesadelo. Máscaras de dragão se misturavam com a realidade cada vez que piscava. Piscou de novo e quando abriu os olhos seu pai tinha ajoelhado em frente ao conselheiro, o que era muito, muito estranho.

Seu pai caiu de bruços e o conselheiro deu um passo para o lado, guardando de volta nas vestes largas a adaga manchada de sangue. Seus olhos cor de mel voltaram-se para Jun, que tentou se encolher, mas descobriu que não conseguia. Ele só tremia violentamente querendo chamar a mãe e o pai sem encontrar a própria voz. Parecia estar preso em seu próprio pesadelo.

O conselheiro ajeitou suas roupas e pegou Jun nos baços, estalando a língua como se tivesse pena dele.

— Você vai ser um bom garoto, não é mesmo, Jun? — ele perguntou, encarando-o firmemente. Nenhuma palavra saiu da boca do garoto, mas o conselheiro não se importou. Ele ajeitou a roupa, segurou Jun firmemente e então acelerou o passo para fora do quarto. Na metade do caminho estava correndo e quando chegou à escadaria principal estava arfando, chamando a atenção de todos os criados que pararam seus afazeres. Ele recobrou o fôlego, então bradou a sentença que definiria a vida de Jun.

— O imperador está morto!

Qingshan e o imperadorOnde histórias criam vida. Descubra agora