Capítulo 1 - A família sem homens

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A família Li só tem um homem: meu tio Chen, que serve ao imperador e que, portanto, nunca está em casa. Para nós, as mulheres da família, ficou a missão de cuidar de... Bem, tudo. Somos uma das famílias mais antigas do vilarejo e vivemos praticamente isoladas. Nosso pequeno povoado fica próximo o suficiente da Muralha para estar sempre com medo, sentindo a tensão que ora se expande, ora parece desaparecer, entre o Império e o Povo do Outro Lado.

O Povo do Outro Lado, dizem as histórias, foi o responsável pela morte do imperador, dez anos atrás. Desde então o filho dele, o Príncie Arjun, aguarda ter idade o suficiente para tomar as rédeas do império do pai. Dizem que este ano ele estará pronto, mas também diziam isso no ano anterior e ninguém viu o príncipe Arjun assumir o trono, ao invés disso ele delega sua posição e seu poder aos seus tutores e ao regente; o conselheiro Zang Wei e seus generais.

Eu, como a mulher que sou, não deveria saber de nada disso, mas não resisto a ler escondida as cartas de minha tia, que por sua vez também não deveria saber de nada disso, mas a frustração de tio Chen é tão grande e o povo está tão cansado de viver com medo, aguardando que o príncipe cresça e derrote nossos inimigos, que até mesmo ele não resiste a lamuriar-se com a esposa.

A tia Mei esconde essas cartas embaixo da lenha na cozinha, que é para não esquecer de queimá-las mais tarde, mas Ru Shi, a filha dela e minha querida prima, é tão sorrateira quanto uma doninha e como ela pretende um dia arrumar um bom partido que a leve do vilarejo, Ru Shi monitora com afinco toda a correspondência dos pais. A principio ela só queria informação sobre os soldados, quem está com qual patente e quem é mais promissor — eu sei que ela vem guardando dinheiro para subornar a casamenteira do vilarejo vizinho, então esse tipo de informação pode vir a ser muito útil. — Mas então as cartas do tio Chen começaram a ficar mais sombrias, seu desgosto com o reino maior e a angustia e preocupação de Ru Shi ficaram maiores que seu medo de ser pega compartilhando informação sigilosa, foi o que a fez mostrar as cartas para mim.

Eu sou Qingshan. A única filha de Li Liang e Li Guan Tao, um dia um general do império, mas que morreu anos atrás durante uma invasão da Muralha. Eu tento ser a filha que dá conta de tudo, mas na maioria das vezes é difícil, pois sem um homem na família é praticamente impossível se manter. Nós não temos autorização para viajar desacompanhadas, nem exercer muitos trabalhos. A família Li só se mantém graças à casa de chá que por sinal é meu único dote e o último presente que meu pai me deixou. É por isso que, ao invés de estar comprando sedas bonitas no mercado e saindo em busca de um bom partido, estou aqui, atrás do fogão a lenha, com minhas roupas mais velhas, fervendo ervas aromáticas e aprontando bandejas de chá enquanto Ru Shi, em seu quimono lilás mais bonito, serve cada uma das mesas de nossos clientes.

Infelizmente nenhum deles é considerado um bom partido.

— Qingshan! — grita Ru Shi assim que atravessa as portas que levam à cozinha, que é onde estou, ajoelhada na frente do fogão, verificando porque a porcaria da madeira não quer pegar fogo. Eu empurro uma tora e sou premiada com uma lufada de fumaça que me faz tossir. — Papai está vindo com um regimento! Vão ficar hospedados aqui!

Eufórica, ela se ajoelha ao meu lado abanando no ar uma folha amassada que ela vinha escondendo no interior do quimono até então. Ainda tossindo e com olhos lacrimejando, eu me levanto içando-a comigo. Será que ela não percebe que está sujando seu último quimono bonito?

— Que ótimas notícias! — tento comemorar entre uma tosse e outra, mas não consigo realmente me animar. Um regimento hospedado no vilarejo, sob a tutela de nosso tio e, obviamente, das mulheres Li, vai nos fazer gastar ainda mais nossos já parcos recursos. Tenho certeza que essa é uma armadilha do tio Chen para casar a filha logo e, talvez com sorte, me casar também.

Qingshan e o imperadorOnde histórias criam vida. Descubra agora